Leio e vejo um áudio vexatório, em toda mídia social que visito, onde um desembargador do TJPR disse que o estado do Paraná é mais culto do que estados de norte e nordeste.

Noves fora a bobagem sem tamanho que a fala do desembargador convola, é preciso também medir o pulso do alcance de tolice, para que se estabeleça a real condição dos estados de norte e nordeste, sem desmerecer o Paraná.

Vamos lá, então.

O Nordeste se caracteriza por seu espectro cultural diversificado, naquilo que recebeu influencias das mais diversas – de povos originários a africanos (ciclo da cana de açúcar), passando por europeus (colonização, by the way).

Nessa medida, essa miscigenação aportou em manifestações folclóricas e populares, desaguando em uma extraordinária produção literária (João Cabral + Jorge Amado + Rachel de Queiroz + Gregório de Matos + Clarice Lispector + Graciliano Ramos + Manuel Bandeira + Torquato Neto + Ferreira Gullar...).

A região norte, a seu tempo e tanto quanto, contabiliza afortunada miscigenação (povos originários + imigrantes cearenses, gaúchos, paranaenses, nordestinos, africanos, europeus e asiáticos) em ordem a revelar diversidade cultural fomentadora (dentre outras) do folclore que contrapõe seus bois (Garantido e Caprichoso) históricos e mundialmente conhecidos, que não são senão o desenho das histórias locais...

Vejo, então, norte e nordeste ricamente miscigenados e com aporte de cada um dos amálgamas culturais dos povos que se lhes originaram e deram a rica e desenvolta sequência que se lhes caracteriza – nada poderia ser mais Brasil, pois, que norte e nordeste.

E o Paraná do desembargador empombado? Sinto informar ao apedeuta que nossa (afinal sou um paranaense, ainda que muito diferente do togado) cultura é fruto de desenvolvimento próprio, o que não é bom ou ruim, per si, ainda que seja o suficiente para desdizer a fake news (eufemismo de mentira) do magistrado, que acredita que cultura é branca e descendente de europeus. Não é!

Nossa literatura está maravilhosamente salva pelo gênio de Leminski (que o senhor talvez nem tenha lido) e nosso teatro é estupendo (obrigado Nitis Jacon). Pensei falar do carnaval curitibano mas achei melhor calar...

Ainda que tenha veneta paranaense (afinal vivo aqui desde meus dezessete anos, casei e formei família com uma fabulosa pé-vermelho que amo com paixão), não me autorizo sobrepô-la à realidade das coisas.

Chamar o norte nordeste às falas comparativas em questão cultural é desconhecer a vida e a arte que deu origem à vida...

Afinal, o que é cultura? Cultura não é senão a somatória das atividades desenvolvidas pelos povos, compondo em sua essência conceitual um amálgama de acepções.

Antropologicamente falando, cultura açambarca a somatória de conhecimento + crenças + arte + moral + costumes entre outros hábitos socais, que o homem adquiriu enquanto partícipe social – conforme Tylor, in Primitive cultere.

Nosso Paraná, por revelar um espectro cultural próprio (o que não é bom nem ruim, repito!), não contabiliza tanta influência de outros afluentes. Nesse sentido não pode ser visto e reconhecido enquanto superior a norte nordeste – a não ser que o ponto de partida da comparação esteja limitado ao arcabouço colonizador europeu...

Se essa for a realidade do togado, sinto desdizê-lo ainda uma vez e em seu campo, suposto que levar em conta apenas e tão somente aspectos alusivos à colonização para considerar um povo superior a outro, nunca deu certo na história da humanidade. Foi, por exemplo, esse equívoco cultural que propiciou a ascensão do nazismo e do fascismo em Europa...

Não por acaso a polícia federal aloca no Paraná o maior número de células nazistas no Brasil. Será que pensar no modelo colonizador enquanto formador do caráter de um povo contribuiu para a ascensão dos nazistas por aqui?

Desembargador, respeitosamente lembro que a toga que ostentas não é vossa. Está vossa. Ela pertence ao glorioso poder judiciário do Paraná que produziu verdadeiras lendas das letras jurídicas – enquanto advogado me contenho para não citar qualquer um dos muitos com os quais convivi. De toda sorte e por todos não posso deslembrar o extraordinário Luiz Viel, a quem rendo homenagens.

Assim é que antes de falar em cultura, devemos estabelecer os parâmetros que lhe são caros para, assim, não cometer contra norte-nordestinos a barbaridade ofensiva que não os desmerece, ainda que mostre quão pequeno possa ser o viés comparativo.

Aqui seria (é) o instante mágico de lembrar Nabokov: ‘na escala das medidas universais há um ponto onde imaginação e conhecimento se cruzam. Um ponto em que se atinge a diminuição de coisas grandes e o aumento das coisas pequenas...´

Norte e Nordeste são cultura em forma bruta.

Tristes trópicos, onde o colonizador fez herdeiros de pensamentos pela terra que saqueou. Saudade Pai.

João dos Santos Gomes Filho, advogado paranaense que é norte e nordeste!