O marido chefe e a ordem das bicadas
Que triste ver um líder religioso atuando com discursos como se estivéssemos em séculos passados
PUBLICAÇÃO
quinta-feira, 17 de abril de 2025
Que triste ver um líder religioso atuando com discursos como se estivéssemos em séculos passados
Mary Neide Damico Figueiró
Quem já ouviu falar em “ordem das bicadas”? Ela consiste em uma hierarquia social que estabelece papéis e regras de convivência entre as galinhas. Essa hierarquia é determinada por meio de interações complexas, como bicadas, pavoneios, grasnidos e muito barulho. É instintivo para as galinhas criarem uma hierarquia e estabelecer quais são as mais dominantes e a ordem em que eles/as vão comer e beber, a posição que vão assumir no poleiro etc.. Essa explicação encontramos no google e em livros de etologia.
Pois bem, li na Folha de São Paulo (de 15 de março), que Frei Gilson, da ordem católica Carmelitas Mensageiros do Espírito Santo, assim afirmou em uma live: “Tô lendo a Bíblia para vocês. Quero todas lendo bem alto: as mulheres sejam submissas aos seus maridos como ao Senhor, pois o marido é o chefe da mulher, como Cristo é o chefe da igreja.”
Hoje, visualizo concretamente o que eu ouvia na escola: o governo quer o povo inculto, pois assim ele é de fácil manobra. Vejo que não só o governo, mas, também, a igreja, em sua vertente conservadora, tem esse propósito. Que triste ver um líder religioso atuando com discursos como se estivéssemos em séculos passados. Certamente, essa forma de intervenção é corresponsável pelo aumento frenético do feminicídio e pela violência nos lares. Além disso, essa concepção tem grandes implicações, a começar pela perpetuação do machismo, pela diferença de remuneração e dos cargos a ocupar no campo do trabalho, por exemplo. Semelhante ao grupo de galinhas e galos.
Atitudes de autoritarismo costumam levar a medidas reacionárias, o que gera o caos na família. Um ambiente de competição e de poder é assaz doentio para a criação dos filhos. Na família, o fundamental é o diálogo, a comunicação. Não é o poder. Não é a ordem das bicadas. Marido não tem que ser maior; mulher não tem que ser submissa. Ninguém tem que ter poder sobre seu par. Pelo diálogo, seja qual for a questão, ambos decidem o que fazer; ora é a esposa que tem maior conhecimento ou experiência ou visão, sobre determinado assunto, ora o marido. Creio que ambos podem participar de decisões no seio familiar.
Sou casada há quarenta e seis anos, e pasmem: tenho mestrado e doutorado e meu marido tem o ensino médio, incompleto. O respeito, a admiração mútua de quem vê seu par crescer como pessoa e no seu trabalho é o que faz com que o amor não morra, mas continue crescendo. A competência profissional, o bom caráter aliado ao bom humor, entre outros atributos, são fatores que sustentam a relação com meu marido. Falo de minha vida pessoal tão somente para mostrar que o sucesso de uma relação não está na competição, nas medidas do poder, mas sim na igualdade, na comunicação, no amor e no empenho em ver o outro feliz.
Falar de uma relação de casal sem viver semelhante experiência é estar em situação desfavorecida; geralmente, é falar de um pedestal sobre algo que não se vive. Pela fala do frei, vê-se que apenas repete trechos da Bíblia sem contextualizá-los no momento histórico em que vivemos. Estamos no século XXI; o mundo evoluiu; precisamos também evoluir.
Não temos o instinto das galinhas. Somos dotados de inteligência. Cristo quer que vivamos com amor, igualdade, justiça e fraternidade. São valores que asseguram uma vida digna para todos, e a igreja pode dar – como já tem feito muito - sua grande contribuição ao mundo, educando as pessoas segundo esses valores morais e cristãos.
Não considero a possibilidade de que a igreja dite normas de relacionamento, sobretudo arcaicas. Minha formação moral, devo muito à Igreja Católica, em especial, às irmãs salesianas do colégio em Cambé. Os cantos que entoávamos falavam de fraternidade, de amor, de respeito pelo outro, sobretudo se esse outro está em situação de sofrimento ou vive desprotegido.
Como pode uma mulher estar emocionalmente bem se sua relação se dá com um alguém superior a ela? Não é possível que ela se relacione, afetiva e sexualmente, com toda sua inteireza, caso se encontre em uma relação desiquilibrada, onde se é submissa, inferior.
Mary Neide Damico Figueiró, psicóloga, mestre em Psicologia Escolar, doutora em Educação, autora de cinco livros sobre educação sexual, professora aposentada da Universidade Estadual de Londrina.
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