O fim das espertezas - Maria Lucia Victor Barbosa
PUBLICAÇÃO
sábado, 29 de janeiro de 2000
Maria Lucia Victor Barbosa
Nesta semana, ao votar a Lei de Responsabilidade Fiscal, a Câmara dos Deputados fez o País dar um passo importantíssimo em termos de história, e por isso merece aplausos. E se como cidadãos temos o dever de criticar os erros daqueles que elegemos para nos governar, por outro lado devemos aplaudi-los quando acertam e beneficiam a Nação, cumprindo assim o objetivo maior da política que é o bem comum.
Nessa apreciação, não se pode também esquecer o grande mérito do autor da proposta original, o ministro do Planejamento Martus Tavares, que ao mesmo tempo se empenhou para a aprovação da lei na intricada rede de interesses parlamentares; e do relator da matéria, deputado Pedro Novais (PMDB-MA). A eles o reconhecimento de terem agido com a grandeza que diferencia o político do estadista.
Na opinião da imprensa, através de um dos editoriais do O Estado de S. Paulo de quinta-feira passada, a lei é educativa porque ensina políticos a administrar recursos com eficiência; preventiva porque inibe ações criminosas de gente mal-intencionada; e é, por tudo isso, um poderoso instrumento de consolidação da democracia em nosso País.
De fato, se a lei disciplina a aplicação do dinheiro, fixa limites para o endividamento e obriga os governantes a equilibrar receita e despesa, contribuirá de forma nunca vista para barrar a ação dos corruptos e dos irresponsáveis, que estando à frente de cargos que deveriam servir ao bom andamento da coisa pública, locupletam-se através de toda a sorte de atos ilícitos.
Lembra bem o deputado federal Luiz Carlos Hauly (PSDB-PR), que o dinheiro arrecadado pela União, pelos Estados e municípios, deveria ser investido em mais saúde, segurança, Justiça, no combate ao analfabetismo, na construção de moradias e estradas, enfim, na erradicação da pobreza. Ele acrescenta, porém, que na prática isso não acontece: Os investimentos são cada vez menores no setor social porque a despesa e a inconsequência dos gastos feitos no passado levaram ao endividamento público.
Na verdade, séculos de colonização engendraram os filhos diletos de nossa cultura política: o clientelismo, o patrimonialismo, o populismo, o paternalismo. Desse modo, o poder sempre foi no Brasil um grande balcão de negócios onde a maioria se farta de benefícios pessoais. Às vezes faz isso descaradamente, às vezes veladamente, mas sempre de forma hipócrita. Como disse numa conferência o historiador José Murilo de Carvalho: Os republicanos acusavam o regime monárquico de ser corrupto, os revolucionários de 30 acusavam a Primeira República de ser corrupta, os democratas de 45 acusavam o Estado Novo de ser corrupto, a Nova República acusou a república dos militares de ser corrupta, hoje todos acusam a Nova República de ser corrupta... Está claro que a corrupção não é um simples problema de moralismo udenista, é um fenômeno sociológico que tem a ver com traços profundos de nossa cultura cívica, ou de nossa falta de cultura cívica.
Esse fenômeno sociológico ficou bem evidente antes da aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal pela Câmara, quando prefeitos se articularam em todo Brasil para inibir a votação. Agora, a lei que atinge tanto o Poder Executivo quanto o Legislativo e o Judiciário, deve ainda passar pelo Senado, e novas articulações estão sendo feitas para tentar impedir que as normas moralizadoras entrem em vigor imediatamente.
Entre os prefeitos que de tudo fazem para adiar a lei ou impedi-la, estão: Raul Pont (PT) de Porto Alegre, Célio de Castro (PSB) de Belo Horizonte, Celso Pitta (PTN) de São Paulo. Este último, irmanado ao prefeito de Salvador, Antonio Imbassahy (PFL) pretende convencer o presidente do Senado, Antonio Carlos Magalhães (PFL-BA) a adiar a votação das novas regras. Para o prefeito de São Paulo, a lei fere a autonomia dos municípios, sendo portanto inconstitucional.
Isso pode querer dizer, que no Brasil é preciso preservar a autonomia do Executivo, do Legislativo e do Judiciário, para que os membros desses Poderes possam continuar a agir irresponsavelmente.
Aos prefeitos inconformados unem-se também outros políticos, como o governador da Bahia, César Borges (PFL), que deseja um período de dois anos para que a lei entre em vigência. Mas vejamos quais são os principais pontos da tão temida lei: será proibido a União assumir dívidas dos Estados, municípios e do Distrito Federal; União, Estados e municípios devem fixar limites para as despesas com juros de dívidas; gastos com pessoal não poderão ultrapassar 60% das receitas dos Estados, 50% das da União e 70% das dos municípios; os governantes só poderão reajustar despesas continuadas duração acima de dois anos seguidos, como os benefícios previdenciários e salários do funcionalismo, se houver aumento das receitas ou cortes de outros gastos de igual valor; os governos serão obrigados a apresentar à população e aos Tribunais de Contas relatórios sobre as contas públicas; as LDOs das três esferas de governo deverão conter metas de desempenho fiscal para o exercício em questão e para os dois anos seguintes; no último ano de mandato dos governos será proibido reajustar salários seis meses antes do fim do mandato e contrair empréstimos que comprometam receitas futuras; o Tesouro Nacional será o único emissor de papéis da dívida pública brasileira; penas para quem descumprir regra serão fixadas em lei ordinária.
Este último ponto é de fundamental importância, pois sem uma lei ordinária que defina os crimes de responsabilidade fiscal e as penalidades, que deverão incluir prisão aos infratores, dificilmente a Lei de Responsabilidade Fiscal será cumprida.
Que venham, pois, essas leis, e que elas possam prevenir, como disse um dos autores do texto, o economista do BNDES, José Roberto Afonso, todas as espertezas praticadas pelos políticos nos últimos anos. Ou seriam séculos?