O bar que reacendeu a boemia na Quintino
Alguns bares da cidade são manifestações orgânicas de existência que se recusam a ser arquivadas antes de vivida
PUBLICAÇÃO
quarta-feira, 30 de abril de 2025
Alguns bares da cidade são manifestações orgânicas de existência que se recusam a ser arquivadas antes de vivida
José Osvaldo Henrique Corrêa
“Sou assíduo cliente. É um bar que não é bar, é um bar diferente.” (Drummond)
Há uma tensão no ar, como se parte da cidade respirasse sob uma camisa polo apertada. Tensão que, talvez, espelhe o nexo mercantil do networking. Por essa parcela, poder-se-ia dizer que o londrinense não é um povo ‘relaxado’, no melhor sentido, mas tenso, como se vivesse em um enorme estabelecimento cuja exigência é a conduta protocolar e pragmática, garantindo à cidade o ethos de um ‘ser comercial’, ‘homo mercatorius’, cujo olhar é inconfundível, se não comparado às aves de rapina, infatigável.
Muitos espaços na cidade não são planejados para o que neles funciona. Faculdades em antigas agências bancárias, consultórios em casas dos anos 1950, lojas de tintas empoeiradas. Improvisos funcionais. Edifícios caros, mas empobrecidos. E, aos poucos, a especulação imobiliária, na cidade que ainda não atingiu seu centenário, vai derramando cimento e desenhando platibandas cinza sobre memórias que ainda não tiveram tempo de ser escritas.
Alguns bares da cidade, porém, são manifestações orgânicas de existência que se recusam a ser arquivadas antes de vividas, de “envelhecer antes dos nossos sonhos”. Redutos de contraposição entre a cultura que se vive e a que apenas se pensa, já que as tradições de uma cidade não se impõem fora da vivência. E não há experiência cultural urbana que supere o que transita (pois, gestado no movimento) no cenário underground e noturno — underground (s. m.): que atua fora do establishment, refletindo pontos de vista heterodoxos, vanguardísticos ou radicais.
Comentando a estrutura mítica de Star Wars, o mitólogo Joseph Campbell aclama uma cena de bar como sua preferida. O bar é como um porto, ponto de partida para uma jornada, cenário de passagem, alegria, excitação e ebriedade. Lugar do estranho e do exótico. Portal contra a rigidez.
Dentre os portos mais aprazíveis daqui, está o famigerado ‘Bar.Bearia’, reduto que reacendeu a boemia na Rua Quintino Bocaiúva por quase uma década e meia, sobrevivendo à pandemia de Covid-19 e à onda moralista que assol(a)ou a cidade, pela iniciativa e resistência de Júnior Carvalho, sua equipe e de um público faminto por ambientes interessantes e por uma cultura com “aura”. E quem conhece um bar outsider sabe que sua freguesia majoritária é gente que realmente produz, de capital à arte.
Nesse lugar de convivência que alimenta a cidade, pessoas se encontram para buscar conexão, ouvir bandas autorais — geralmente gratuitamente, com possibilidade de contribuição voluntária — e se embriagar dos mais variados assuntos.
Sua mudança foi anunciada após certa imposição imobiliária — parafraseando um ex-presidente: “forças terríveis levantam-se contra mim, e me intrigam ou infamam” —, mas não para tão longe do antigo logradouro. O ‘Bar.Bearia’ continuará a acender a noite londrinense (agora na Rua Benjamin Constant), contribuindo para que a vida se distensione e a cidade relaxe. O bar, sendo fluxo, não será como antes: quiçá, melhor.
José Osvaldo Henrique Corrêa, historiador, filósofo e jurista e professor
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