Imagem ilustrativa da imagem No rastro da destruição
| Foto: Arquivo Pessoal



"O que era uma área de vales e montanhas deu lugar a uma planície de lama". Esta é a definição do geólogo e professor da UFPR (Universidade Federal do Paraná) Renato Lima sobre o cenário encontrado na região do Córrego do Feijão, em Brumadinho (MG) após o rompimento de uma barragem de rejeitos de mineração da Vale. Lima liderou a equipe do Cenacid (Centro de Apoio Científico em Desastres) que, durante a semana, esteve em Minas Gerais prestando apoio na elaboração de mapas que irão auxiliar os serviços de buscas e que poderão nortear políticas de prevenção de futuras tragédias do gênero.

Integrante da equipe Undac (Coordenação e Avaliação de Desastres) da ONU (Organização das Nações Unidas) e consultor da organização para desastres, Lima participou de atendimento a desastres em vários países e disse que ainda não havia visto tragédia semelhante. "Além das mortes ocorridas e dos danos ambientais, há um sentimento de medo muito grande, em virtude de outras barragens existentes em todo o Estado", comenta. O geólogo comenta ainda a inócua gestão de risco no País e a falta de uma cultura de protocolos e planos de emergência. Confira a entrevista.

Como foi a atuação do Cenacid em Brumadinho?

O papel do Cenacid é proporcionar apoio científico e técnico à comunidade em situações de emergência, assim como gerar propostas de ações. A equipe fez a elaboração dos primeiros mapas com as análises do fluxo de lama e dos danos causados. Os dados dão subsídios paras as equipes de busca e também servirão como parâmetro para as discussões de segurança de barragens, que certamente ocorrerão. O Cenacid já atuou em desastres em Santa Catarina, na região serrana do Rio de Janeiro, em terremotos no Peru, furacão na Guatemala, mas o que ocorreu em Brumadinho realmente chama a atenção. Procuramos realizar nossos estudos científicos de avaliação de risco para tentar reduzir essas perdas e, assim, amenizar o sofrimento das pessoas.

Qual o cenário encontrado?

É de total transformação. Houve uma mudança de paisagem. Você via a região de uma maneira, no outro dia ela está totalmente diferente. Aquilo que era uma região de vales e montanhas é agora uma grande planície de lama. Essa planície de lama marrom é uma paisagem estranha. É um deserto de lama no meio de uma área verde, fértil. Total devastação. O fluxo de lama teve uma capacidade destrutiva muito elevada. Fizemos o primeiro mapa de capacidade destrutiva que foi entregue aos bombeiros. Do ponto de vista humano, o que encontramos é uma cidade muito triste. As pessoas todas da cidade ou tiveram perdas de familiares, amigos, ou alguém da sua rua. Além da tristeza percebemos perplexidade e medo, uma vez que há muitas outras barragens espalhadas pelo Estado de Minas Gerais. Porque havia uma certa convicção que depois do acidente de Mariana, não tivemos mais acidentes dessa magnitude, pelo menos num curto espaço de tempo.

Pela extensão dos danos causados, quanto tempo deve levar a recuperação daquela área?

Isso tem que ser observado de diferentes olhares. Na Guatemala, por exemplo, um fluxo de lama soterrou cerca de 700 pessoas. Pela impossibilidade de se retirar todas as vítimas, o local foi declarado um campo santo. As pessoas vão lá e fazem suas homenagens, uma espécie de cemitério. Em Brumadinho também será impossível de se localizar todos os corpos. É uma situação bem delicada. Já em outros locais a recuperação é bastante significativa. A natureza tem capacidade de se recuperar gradualmente, mas em Brumadinho não vejo capacidade significativa de regeneração naquela área antes de uns dez anos.

A resposta da Vale de acabar com barragens a montante foi substancial ou ainda há mais o que se fazer?

Nesse primeiro momento, nós vamos ter que revisar todos os nossos procedimentos em relação à segurança de barragens de todos os tipos. Eu não penso que isso não vá ficar restrito à Vale. Todos os responsáveis por barragens estão fazendo suas avaliações, revisando equipes técnicas. É um alerta para toda a sociedade brasileira. O risco é muito elevado, associado a alguns tipos de volumes, tanto de água como de rejeitos. Nesse caso, o número de vítimas, de duas a três centenas, é correspondente a uma guerra, isso em dez minutos. É uma taxa de risco muito elevada, então acredito que vamos passar por uma revisão, uma readequação. Tem que passar um pouco de tempo para que as coisas se estabilizem de uma maneira organizada para melhorias. Eu acho que vamos percorrer esse caminho aqui no Brasil.

Como você avalia a gestão de risco em relação a planos de emergência e evacuação no Brasil? Falta uma cultura de protocolos de como se agir?

Falta uma preparação cultural e também uma preparação prática. Na maioria dos casos, as pessoas não têm preparo e não têm equipamentos à disposição. E, se têm, não sabem o que significa. As vezes pode tocar a sirene e a pessoa não sabe o que significa. Porém, neste caso, o fluxo de lama atingiu uma velocidade muito alta. A equipe do Cenacid calculou uma velocidade de 8 a 12 metros por segundo [entre 30 a 45 km/h] com uma capacidade destrutiva muito grande, que não oferecia a menor chance para aqueles que estavam no caminho dos rejeitos. Só se estivesse muito longe para as pessoas conseguirem se mobilizar. Fluxos como este são muito rápidos. Esse sistema funcionaria para as regiões a média distância ou inferior ao Córrego do Feijão. As informações até agora são de que não houve esse alerta [sirenes]. Se tivesse ocorrido, poderia ter salvado muitas pessoas em posição inferior ao Córrego do Feijão.

A instalação da barragem em um nível mais alto que a vila administrativa é comum?

Já vi em outros locais esse tipo de situação. Muitas vezes a vila fica a montante. Em algumas situações, isso é considerado uma relação de confiança no projeto, onde os próprios construtores estão ali demonstrando que confiam plenamente naquela estrutura. Agora, nós temos essa visão conceitual que não existe risco zero, então não devemos facilitar. Mesmo em um acidente menor, o fluxo geraria um acidente bastante significativo nessa vila que ficava logo abaixo. A perda é muito grande. É um volume muito grande de rejeitos, as perdas são imensas.

É preciso ampliar a fiscalização?

Passamos por ondas cíclicas. Em determinados períodos dizem que não precisamos mais do serviço de fiscalização, que isso é um exagero, que tem que ser reduzido, limitado, que a fiscalização atrapalha o desenvolvimento. Por outro lado, há pessoas que dizem que precisamos de muito mais fiscais, milhares e milhares, o dia inteiro fiscalizando. Nenhuma coisa nem outra. Nós precisamos da fiscalização necessária, suficiente e de boa qualidade. O País, para a segurança de sua população, precisa ter todas as atividades de risco fiscalizadas, com o rigor da lei. Isso é uma tarefa de Estado, não de governo que a cada quatro anos pode mudar como isso é feito. Porque os fiscais precisam ter segurança, treinamento, estabilidade, ganhar experiência, competência e até, ganhar o reconhecimento da sociedade que é questão de defesa da sociedade, para que ela se sinta segura.

Há alguma barragem com risco desta magnitude no Paraná?

O Paraná tem diversas barragens, a maioria delas de outros tipos, que não de mineração. Não há nenhuma estrutura que a gente plante que seja de risco zero. Para quem trabalha com risco isso é um conceito básico. Entretanto, não tenho conhecimento de situações que necessite de ação urgente ou que mereça uma postura alarmista em relação à segurança das nossas barragens. Ocorre situações de barragens construídas de forma improvisada, de pequenas barragens agrícolas e isso merece um conhecimento, uma avaliação. As pessoas que têm esse tipo de estrutura estão percebendo a situação de risco em que se encontram e buscando formas de fazer adequações.

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