A morte aos 100 anos de Henry Alfred Kissinger, em 29 de novembro, fez a imprensa internacional recontar a história do mais poderoso secretário de Estado dos Estados Unidos. Para alguns, foi considerado o homem forte que teve capacidade, inteligência e estratégia para enfrentar os grandes desafios internacionais do seu tempo, mas outros o veem como um “criminoso de guerra”, o mais “sanguinário do século XX”. Há consenso, porém, de ele foi o senhor todo-poderoso do pós-guerra, influenciando diretamente no resultado de conflitos em diversos países.


Kissinger não herdou nada, pavimentou a sua trajetória com muito esforço. Com 15 anos, em 1938, seus pais, fugindo do nazismo, buscaram asilo nos Estados Unidos. Como refugiados judeus, alugaram um pequeno apartamento em Nova York, no qual Henry e seu irmão Walter tinham que dormir na sala.

Após obter cidadania, Kissinger voltou a Alemanha, em 1943, como soldado da força de ocupação do exército norte-americano. Após concluir sua excepcional formação em Harvard, onde também foi professor, construiu uma carreira diplomática brilhante.


Oficialmente, Kissinger foi conselheiro e chefe do Departamento de Estado dos presidentes Richard Nixon e Gerald Ford, mas sua atuação e influência fez dele mentor de outros 10 presidentes. Ele se tornou uma memória viva de tudo o que ocorreu de importante no mundo nas últimas décadas. Um exemplo recente: em julho deste ano, já com 100 anos, foi recebido calorosamente na casa de hóspede Diaoyutai (um local mais íntimo do que o Grande Salão do Povo) pelo todo-poderoso presidente da China, Xi Jinping. Conforme mostrou a TV estatal chinesa, sorridente, Xi disse para Kissinger: "Estou muito feliz em vê-lo, senhor". A distinção dessa recepção do mandatário chinês ao aposentado Kissinger não tem precedente na diplomacia.


Ele teve tanto poder nas mãos que o historiador Greg Grandin, da Universidade de Yale, estima que entre 1969 e 1976, mais de 3 milhões de pessoas morreram em decorrência das políticas adotadas pelo ex-chefe do Departamento de Estado. A queda do governo de Salvador Allende, no Chile, e outras tantas intervenções diretas na América Latina como a “Operação Condor”, são ações contabilizadas como ordem pessoal de Kissinger.

Ele chegou a dizer que desconhecia e ignorava os problemas da América Latina, e que seu eixo de poder e de importância começava na Rússia, passava pela Alemanha, Estados Unidos e seguia em direção à China e ao Japão.


Sob às ordens de Kissinger, a máquina de guerra americana agiu diretamente ou apoiou seus aliados no Vietnã, Camboja, Laos, Bangladesh, Timor Leste, Chipre, Angola, Nova Guiné e tantos outros países. A justificativa usada por ele era o combate firme ao comunismo. E foi no enfrentamento ao comunismo durante os anos da Guerra Fria que os estudiosos reconhecem a atuação cerebral de Kissinger, reconhecendo-o como o “arquiteto” americano que ajudou a evitar um conflito nuclear nas tensas negociações bilaterais como a Rússia. Em 1973, ele ganhou, com muita polêmica e protesto, o prêmio Nobel da Paz.


Fato curioso na sua longeva carreira é que, mesmo passando décadas combatendo o comunismo, foi o responsável por, pessoalmente, pavimentar a ida do presidente Nixon à China em 1972. Além de isolar a então poderosa União Soviética da tutela da empobrecida China, os ávidos negociantes americanos buscavam a mão de obra barata, e, posteriormente, milhões de consumidores. Nesse xadrez diplomático, o tiro saiu pela culatra, pois a China aprendeu a jogar as regras do capitalismo, mas manteve a rédea curta da ditadura comunista, e assim virou uma superpotência econômica e bélica que hoje rivaliza com os americanos.


Se nos Estados Unidos (e muitos outros países) a morte de Kissinger dividiu opiniões, coincidentemente na China comunista o presidente Xi Jinping e outros poderosos de Pequim manifestaram profunda gratidão à memória dele. Ao contrário de uma morte cruel desejada por tantos dos seus inimigos espalhados pelo mundo, Kissinger descansou calmamente, ao lado da esposa Nancy, no seu pequeno refúgio na cidade de Kent (Connecticut) onde sempre foi considerado um bom filantropo.



Edinelson Alves é jornalista e foi correspondente nos Estados Unidos