Mídia e racismo - Ricardo Inácio Alexius
PUBLICAÇÃO
terça-feira, 11 de janeiro de 2000
Ricardo Inácio Alexius
Há alguns anos, líamos livros e assistíamos a filmes de ficção que retratavam a vida dos humanóides do ano 2000; e agora, estamos no tal futuro. E passamos horas a meditar sobre os projetos e esperanças para o novo ano. Independente da controvérsia ou farsa envolvedoras da mística da passagem para o próximo milênio, que só virá no final deste ano, com uma nova investida da mídia, corrida aos pacotes turísticos, presentes e gastos supérfluos, o que esperamos do ano 2000?
Além dos bens materiais, próprios de uma sociedade capitalista copiada sem muitos ajustes, desejamos paz e prosperidade a todo mundo, substantivos abstratos inseridos na decoreba do Feliz Ano-Novo.
Por menos que nos lembremos da inanição, no fundo esperamos que ninguém mais morra de fome, e nem de indigestão. Que as crianças de rua não sejam tratadas como animais, ou melhor, que nem existam crianças de rua.
Esperamos que o ar esteja limpo para podermos respirá-lo sem medo, e que água não esteja contaminada pela ganância e imprudência de poderosos ou pela ignorância dos analfabetos.
Gostaríamos de ver findo o racismo. Não só aquele declarado, de insultos, mas também aquele incutido na indiferença, ou nas pomposas preparações para as festividades dos enganosos 500 anos do Brasil, onde é assassinada a presença de 5 milhões de índios na terra descoberta, e onde é rechaçada a participação de milhares de negros que, acorrentados em porões e atacados de escorbuto, fizeram o cruzeiro marítimo de ida sem volta, para colaborarem com sua etnia na construção de um Brasil com palavras de origem: mandioca, samba, bacalhau e esperanças.
A data comemorada é o denominado descobrimento, acontecimento que envolveu objetivos comerciais, diplomáticos e militades. A errônea idéia a ser incutida em nossas mentes, de que o Brasil, como país, nasceu naquele dia 22 de abril, não é porém uma leviandade ingênua. Uma vez que seus autores leia-se Presidência da República são responsáveis pelo maior ataque aos interesses nacionais jamais ocorrido na nossa história, deduz-se que a campanha tem a finalidade de difundir uma certa versão dominante sobre a formação do Brasil.
Como diz o sociólogo Ronald Rocha, da revista Práxis, a organização dos eventos oficiais em torno dos 500 anos aponta para a instrumentalização do sentimento patriótico espontâneo, bem como das realizações de várias etnias e segmentos sociais componentes da civilização brasileira, visando a reproduzir e a intensificar a inconsciência de si e a servidão espiritual no interior das classes e setores explorados e oprimidos.
Nosso território, habitado há dezenas de milhares de anos por humanos originários da Ásia e da Polinésia, é agora sarcasticamente venerado com um aniversário de 500 anos! Dizer que este País foi descoberto por um europeu é uma piada ou uma injúria tão grande como as teses que tentaram ao longo dos anos provar a superioridade de determinadas raças sobre outras, como a bem conhecida limpeza étnica promovida por Hitler.
Não é à toa que cada vez fica mais famosa a carta enviada pelo chefe indígena Seattle ao presidente dos Estados Unidos, em 1854, quando este lhe faz oferta para a compra de terras: ...Uma porção de terra para o homem branco representa o mesmo que a outra, pois ele é um forasteiro que vem à noite e retira dela o que necessita. A terra não é sua irmã, mas sua conquista. Rapta da terra aquilo que seria de seus filhos...
Como pode uma comitiva de navegantes descobrir terras habitadas por uma população maior que a própria população de Portugal, na época? A redução do valor sociocultural destes nativos ao nível de não humanos não é a única injustiça cometida, uma vez que hoje se comemora um descobrimento sem a presença das etnias negras, que participaram e participam da miscigenação para formação de um povo que agora chamamos de brasileiro. Se o País tivesse sido fundamentado realmente pelo fato do descobrimento, o ato seria exclusivamente europeu.
Recentemente, o ex-ministro Roberto Campos procurou dar explicações para a permanência do Brasil dentre os países subdesenvolvidos, comparando-o com um mítico Primeiro Mundo. Nas entrelinhas, Campos culpa nossos componentes culturais, e investe contra os ibéricos, com sua cultura de privilégios, contra os indígenas e sua indolência e a cultura negra da magia. Enaltece os Estados Unidos como a sociedade mais inovadora e criativa da era moderna.
Centenas de movimentos emancipatórios que tivemos de decorar nas aulas de História nos bancos colegiais, devem ser deletados da memória, pois o dia 7 de setembro não será ironicamente tratado como feriado, Dia da Independência do Brasil. Devemos resgatar nossa verdadeira história, os combates pelos direitos políticos, de liberdade e justiça, estes, sim, existentes há 500 anos.