Diz-se que a Internet em esmagadora maioria é um aterro sanitário tal o uso dos seus espaços para o ócio, a disponibilidade gratuita, o gracejo. Uma das mais recentes é um irreverente exercício de como seria o Hino Nacional escrito por um publicitário com a observação de que se tornaria pior se elaborado por um advogado, um bacharel de folhas, o Doutor Data Vênia.
‘‘Num Posto da Ipiranga, às margens plácidas// De um Volvo heróico Brahma retumbante// Skol da liberdade em Rider fúlgido// Brilhou no Shell da Pátria nesse instante// Se o Knorr dessa igualdade// Conseguimos conquistar com braço Ford// Em teu Seiko, ó liberdade// Desafia o nosso peito à Microsoft// O Parmalat, Mastercard, Sharp, Sharp// Amil um sonho intenso, um rádio Philips// De amor e de Lufthansa terra desce// Intel formoso céu risonho Olympicus// A imagem do Bradesco resplandesce// Gillete pela própria natureza// És belo Escort impávido colosso// E o teu futuro espelha essa Grendene// Cerpa gelada!// Entre outras mil é Suvinil, Compaq amada.// Do Philco deste Sollo és mãe Doril// Coca-Cola, Bombril!’’
Já no tempo de criança, apesar do ‘‘Estado Novo’’ de Getúlio Vargas que cultivava os símbolos nacionais como em nenhum momento da história, mais do que depois da ‘‘Redentora’’ de 64, a piasada fazia esses exercícios. Do nosso rico hinário como o da Independência que começava assim ‘‘Já podeis da Pátria livre// ver, contente, a Mãe gentil...’’ a turma entoava ‘‘Japonês tem quatro filhos...’’ e adiante ‘‘ porém se a Pátria Amada// precisar da macacada//’’ e lá vinha outro palavrão.
Nem os cânticos religiosos, no tempo da Guerra Fria, escapavam desse tipo de exercício: ‘‘A massa oprimida entrou no castelo// levando nas mãos a Foice e o Martelo// Ave, ave, Lenine// Ave, ave, Staline//’’ O original, como no caso do hino brasileiro, é bonito: ‘‘Um anjo descendo// num raio de luz// Feliz Bernardete// que à fonte o conduz...’’ Nos congressos estudantis a tensão era grave (falava-se em grupos armados à direita e à esquerda), mas havia paródia do jingle de Natal: ‘‘Sabãozinho, sabãozinho// de burguês gordinho// toda vil reação// vai virar sabão//’’
Formalistas se exasperarão com o exercício do internauta, mas ele tem carga crítica dos exageros mercantis e de ‘‘merchandising’’ do nosso tempo, pulsão dessacralizadora que é imanente à sociedade mutante e de consumo que ameaça tudo. Felizmente a bandeira e o hino estão livres de heresias como a dos uniformes esportivos, a camisa da seleção, também um símbolo, em que aquele grafismo da Nike a domina como imposição mercadológica.
PÁTRIA & CHUTEIRA Nelson Rodrigues é autor daquela definição de que a Seleção Brasileira seria a ‘‘Pátria de chuteira’’. De fato, a despeito dos rigores dos decretos que regulam o uso do pavilhão nacional, se há um momento em que isso se torna impossível é quando joga o escrete brasileiro. Aliás o mais duro dos presidentes militares, Emílio Garrastazu Medici, até por ter uma identificação sincera e autêntica pelo esporte (Flamengo e Grêmio), foi o beneficiário dos feitos das seleções de futebol de 70, a tricampeã, como também do basquete.
Apesar das violências do regime militar, o país confraternizava nas ruas, desfraldando a bandeira nacional, com os feitos da seleção no México. E isso, dá para lembrar bem, ocorria quando o país praticamente fechava as malhas de telecomunicações e com o que o regime obtinha um feito excepcional em termos de integração geopolítica e até de unidade nacional.
Um anúncio dos feitos das telecomunicações, aliás aqui da Telepar, quando
era boa e pública e não abagunçada e privada, captou o jogador Petras,
ponta-direita da seleção tcheca, autor do primeiro gol contra o Brasil, fazendo o sinal da cruz no canto do campo, logo ele atleta de um país comunista. A cena fortíssima só se diluiu de nossa mente porque o Brasil virou o jogo e o Pelé quase fez um gol do meio do campo no goleiro que estava adiantado.
Mas se vale a observação de Nelson Rodrigues a Seleção atual é muito mais a ‘‘Pátria de tamanco’’, pois sofre até para não perder dos Estados Unidos da América do Norte e do México que até aprontou um olé.
NACIONALISMO Com a globalização, a vertente nacionalista volta a impor-se. Na França com Le Pen, nazista mal disfarçado, e ainda há articulações como a do Nafta por definição de nichos de mercado ou de ação política e cultural como a da Liga Lombarda na Itália. Uma das idiotices do nacionalismo varguista era uma que pretendia substituir o Papai Noel, tido como cosmopolita, pela figura de um Índio Velho. O pior é que figuras de expressão se prestavam a essa jogada do regime como o autor teatral Joraci Camargo, o maestro Haeckel Tavares e o cantor Edson Lopes que figuravam na caravana cultural. Ela passou por Curitiba e é claro o Índio Velho ou o Pai Índio não emplacou. Papai Noel, figura pagã (como aliás o é a origem do Natal), mas também sincretizada com São Nicolau, se manteve. Como dizia o Collor: o tempo é o Senhor da Razão, o que não impede que o Taliban detone hoje monumentos seculares em nome do fundamentalismo religioso.
BESTIALÓGICO Um exercício curioso dos estudiosos de métrica poética, no tempo do colegial do Ginásio Paranaense, era o de declamar os versos malucos de um poeta lusitano ‘‘Tu és o quelso do pental ganíreo// saltando as rimpas do fermim calério...’’ A rima, imaginem, era com ‘‘pijon sidério’’.