Luiz Geraldo Mazza
PUBLICAÇÃO
sábado, 01 de abril de 2000
Questão de escala
Há quem raciocine sempre em torno do passado, idealizando-o, o que, muitas vezes, é uma forma inconsciente e tortuosa de escapismo. Pessoalmente volta e meia me flagro não como saudosista, mas opondo alguma forma de resistência à passagem rápida do tempo, não com o impulso de hiberná-lo, porém disposto a tudo fazer para reduzir-lhe o ritmo, o dedo no ponteiro do relógio.
Quando pintou a aids veio a piada, inscrita em alguns muros: como era bom no tempo da gonorréia. Hoje, quando vemos a forma como a criminalidade se impôs na malha institucional, como um tipo de parasitismo em que a doença se torna maior do que o corpo minado, a listagem dos pecados da polícia, lá dos anos 50, era classificável na linha dos veniais. A de hoje, em maioria, são mortais até porque matar passa, em muitos casos, a ser uma rotina.
A NOITE
Entre 50 e 60 tivemos o período áureo das boates e das argentinas, epopéia narrada pelo Renato Ribas, vulgo Reinaldo Egas, o repórter-cronista e que viveu intensamente tudo isso nos seus relatos de Ecos da Noite. Pois os policiais frequentavam esses inferninhos e lhes davam piedosa proteção em troca de boca-livre, de anistia para as contas. Como de resto, na área de jogos havia a clássica mordida nos bicheiros e, de vez em quando, as canoas em cima de cambistas e apostadores. O pastelão, de o cambista engolir a aposta, era menos constrangedor, ainda que anedótico, do que os traficantes, homens e mulheres, que botam a droga no sexo, escondidinha, como se dá volta e meia.
Até a violência era pedagógica e isso ficou nítido em façanhas, aqui narradas do delegado Pedro Darci de Souza, o Mamão, ao queimar a identidade de um oficial da Aeronáutica, que trepava num banco redondo da Praça Osório e se dizia imprendível ou ao jogar lá na calçada da Barão do Rio Branco um aluno do CPOR (que por essa condição não poderia ser preso, a não ser pela Polícia do Exército) pela janela da delegacia de Plantão.
Isso, porém, que está acontecendo agora e que todo o mundo sabia, jornalistas inclusive, e fingia ignorar é, efetivamente, uma questão de escala, de valores desagregados, embotamento, costas quentes da classe política que apadrinha os ousados. Que bom o tempo em que o tira se limitava a tomar uma grana da casa de cômodos, mais barata que o puteiro (velharia, que sumiu do mapa, hoje substituída pelas boates de estrada e os motéis) e que fazia acordos com o caften ou ainda que dava mordidas em casas de carteado. Na modernidade, isso rima e é verdade, não há lugar para a ingenuidade.
SEQÜESTRO Os tempos eram tão calmos que Ney Braga ficou famoso por ter resolvido o primeiro (imaginem) caso de sequestro e morte de um taxista, cujo corpo foi lançado no Voçoroca (aí está a maçaroca, uns escrevem com cê cedilha, outros com dois ésses). O impacto foi grande porque abriria, como de fato abriu, um novo ciclo de criminalidade. Naquele caso, houve a tentativa de linchamento e Ney Braga ganhou no papo a compreensão dos motoristas que em maioria passaram a votar nele para o que desse e viesse.
POLÍCIA E POLÍTICA Sempre e isso vem de longe a política interferiu nas ações da polícia. Pinheiro Júnior, competentíssimo chefe de polícia, mil vezes mais qualificado do que a média que anda por aí, foi deputado estadual e era um jornalista mordaz, provocativo e sutil. Peregrino Dias da Rosa Filho, enorme e por isso chamado de jóquei de elefante, se elegeu com suas atuações no trânsito e delegacias como deputado federal. Outros que se saíram bem na área foram os deputados federais Agostinho Rodrigues e Ítalo Conti (este deve ter dado uma limpa nas fichas da DOPS, inclusive na minha). Agora o único que deu o salto de carreira política, que o levaria primeiro à Prefeitura de Curitiba (primeira eleição direta) e, na sequência, a deputado federal (só perdeu para Jânio no Paraná, que concorreu pelo PTB e bateu no Plínio Salgado e em Accioly Filho) e ao governo estadual, foi Ney Braga, chefe de Polícia de Munhoz da Rocha, seu cunhado.
O PEDÁGIO O pedágio da tiragem era menos confiscante que o das estradas de hoje, o assalto autorizado e legal. Em Paranaguá houve um delegado que acertava todo o dia no bicho. Tinha noção de escala e não desejava matar a galinha de ovos de ouro e nem quebrar a banca do Agripino. Mandava o seu motorista e ele fazia a aposta assim: quinhentos réis no primeiro lugar. Sem especificar o número, se dezena, milhar ou centena. Um dia o bicheiro, que andava louco para falar com o delegado, o encontrou na frente da Estação Ferroviária e fez a reclamação: o seu motorista agora está jogando também alguns tostões no primeiro lugar, junto com a sua aposta e se entrar mais gente todos nós vamos sair perdendo.
Merecia o apoio dos taxistas, dos policiais, aquele que sabia manter essa relação num plano de dignidade, o que inexiste hoje porque ficará nítido que os desmanches participavam e participam como financiadores de campanha eleitoral, como se observa da intimidade existente entre eles e esse tipo de mediação, tal qual aparece nas declarações de um deles.
PARANÓIA A propósito de assaltos a motoristas, quando eles se tornaram uma rotina, que nem o uso do rádio reduziria de forma significativa, houve um episódio sensacional com um motorista da Praça Osório. A história, contada por ele, num programa do Chico Anísio, arrebentaria a boca do balão. Só tem graça se contada por um polaco (o Jaime Lechinski, por exemplo) que sabe imitar-se. Conta que de madrugada apareceu um cliente, olhos agudos, cabelo desgrenhado, querendo uma corrida até a Serra da Graciosa. De olho no espelho, e já rezando, acompanhava a figura estranha do banco de trás. Não falou nada, o que tornava tudo mais tétrico. Num lugar ermo, pediu que parasse o táxi e já saiu tirando a roupa, o paletó, camisa, calça, cueca, sapatos, meias e, pelado, subia e descia numa árvore (qui ni macaco, relatava) até fartar-se. Botou toda a roupa (o motorista continuava rezando) e pediu para voltar ao ponto de partida, agora mais calmo, como se tivesse saído de uma sauna. Chegou na praça e não falou durante o percurso. Perguntou quanto era a corrida, pagou, deu dois passos para a frente e uma risadinha. Aí o polaco fecha a história dizendo eu acho que esse cara estava me gozando! Como se vê, até os loucos eram sublimes e as vítimas, angelicais. Uma questão de escala.