Rio encantado
Se o próprio rio Belém, dos mais poluídos de Curitiba, foi hibernado nas crônicas do Dalton Trevisan (dizem que ele costuma arrebanhar em sebos aquilo que escreveu e hoje abomina, muitas dessas criações ótimas, ainda que sem a secura do texto atual, reprocessado, levado à sintese, o faca só lâmina de João Cabral de Melo Neto) é possível ver com a lente da magia o Barigui.
Do Belém eu me assustava com a ousadia de guris e marmanjos do meu tempo que nele faziam as suas abluções. O Barigui eu ainda o apanhei de águas limpas e poucas moradias, baixa ocupação industrial (uma ou outra olaria, o moinho do Weigert) e até me servia de espaço, isso lá por 1954, para exercícios peripatéticos com tomos imensos de Direito Processual Civil. Aprender andando, dizia Aristóteles e eu o fazia nadando e, depois, tomando esse banho de sol ardido de Curitiba.
Uma vez, eu e o pintor Loio Pérsio, colega de turma, ficamos ali na Volta Funda num cenário surreal: entre os mergulhos no rio (eu tinha pretensões de saltos ornamentais, o ‘‘canivete’’ e o ‘‘carpeado’’, tomando cuidado para não cair de ponta, já que a lenda insistia na existência naquele poço de um pinheiro inteiro, imaginem o absurdo) e a observação das papanás multicores, com seu vôo de borboletas embriagadas e os pássaros ainda havia paciência para ver a interpretação, a inteligência como dizia o professor, de artigo de lei.
Dos lambaris do rabo vermelho, que o Dalton buscava no Belém, lamentando essa passagem do tempo, nós os víamos no Barigui. Não apenas eles como saicangas, acarás, mandis, guascas. Os acarás eram ‘‘toqueados’’ : os guris os apanhavam em seus refúgios e até os enxergavam, dado o baixo índice de turbidez.
A toponímia era lírica e debochada. No Barigui havia a ‘‘Panela’’, ‘‘Toco’’, ‘‘Princesinha’’, ‘‘Carniça’’. Na Vila Parolin, num outro rio, um deles se chamava, vejam só, ‘‘Bucetinha’’ porque seu delicado formato lembrava a genitália feminina, registro que apareceu num memorial do Jamil Snege. A infância reprimida projeta seus bloqueios sexuais na minigeografia.
Este banho era sagrado, ainda que totalmente alegórico, tanto, porém, quanto a busca da purificação no Ganges.
NASCENTES
Só no campo do 5 de Maio, na frente da hoje Arena da Baixada, havia pelo menos dois ‘‘olhos d’água’’, cuja linfa, fresquíssima, bebíamos com unção e não dávamos ouvidos aos alertamentos de que ali poderíamos contrair doenças. Nascentes eram convite à contemplação: uma bolha d‘água na relva, o fundo borbulhante, alcalino-terroso, embrião do rio inconcluso, os futebolistas exaustos, lembrando cavalos no bebedouro, corpos estendidos, enfiando o rosto na magia, dessedentando, borrifando pulsos e têmporas para fugir da insolação
O ÚTERO Um psicanalista avoado, mais retórico (e todos o são) do que a medida comum, talvez descobrisse uma pulsão de retorno ao útero nos brinquedos mais mórbidos da gurizada em ocultar-se em escavações, minas e até mesmo boeiros. Era angustiante - ultrapassar o ralo estreito e depois temer não conseguí-lo no retorno à rua. Penetrar em valos com água que desapareciam na terra era outro folguedo radical, desafio aberto ao desconhecido e à morte. Quando um demorava para sair do outro lado às vezes se dava o pânico, posto que muitas vezes tudo não passava de molecagem como a dos gurís que mergulham no rio ou tanque e se valem da água escura para demorar no retorno e assustar os que os aguardam. Brinquedos que por vezes redundam na morte ou acidentes extremos como o dos deslizamentos no brinquedo de cavernas.
Lembro, em 85, quando recebi o título de cidadão honorário de Curitiba, que me referi, nas recordações da meninice, como um Rômulo que exalta a loba que o amamentou, ao fato de ter bebido a água-nutriz das entranhas da cidade.
O VÍDEO Já teremos dentro em pouco na Rua XV, a das Flores, os mil olhos do Doutor Mabuse das câmeras de tevê nos observando, patrulhando, logo nós que mais carecemos de anjos da guarda do que de vigilantes, de intenções ocultas. Mas nesta semana tivemos a manifestação de estudantes de Arquitetura e engenheiros contra a deturpação, violentíssima, do layout e, muito mais do que isso, da essência arqueológica do Centro Cívico.
Pouco depois da manifestação, o Sindicato dos Engenheiros distribuia um vídeo de 30 minutos com o título ‘‘A Praça não é nossa!’’. O clip é uma das armas dos grupos organizados para denunciar tudo. Foram alguns deles, mais do que as imagens formais da televisão comercial, que influíram decisivamente em 1988 na repressão do governo Alvaro Dias contra os professores. Como de resto alguns da própria PM, serviço da P-2, que revelaram uso da força nos despejos do MST.
A oposição diz ter imagens do despejo dos sem-terra do Centro Cívico, ainda que procedido de madrugada. Não vai sensibilizar porque a maioria da sociedade achava intolerável a arrogância do acampamento e nesse sentido não terá a força política da repressão aos professores. Que, aliás, convenhamos, abusaram e muito ao se aproximarem tanto do Palácio como se pretendessem ocupá-lo. Quem sai dos limites corre riscos. E o governador Alvaro Dias, à época, quis lançar tudo nas costas da PM, mas acabou ‘‘justiçado’’ eleitoralmente em 94. Mereceu.
A MASSA 1 Durante uns quinze anos me dediquei a agito de rua. Talvez venha daí minha resistência, zoológica, ao Carnaval curitibano, que não tem a crispação, a ansiedade, de ruptura, o mito das barricadas.
Um dia, por causa das mensalidades escolares, na Praça Rui Barbosa, houve o cerco do Colégio Iguaçu. O delegado Arlindo Godoy, imprudentemente, com arma na mão, quis peitar a patuléia. Na hora agá retraiu-se e atirou para cima. Foi o estouro da boiada: a escumalha partiu em direção a ele, o policial que cuidava das operações, e ao colégio, derrubando portas e janelas com uma fúria de Revolução Francesa, de Queda da Bastilha.
A MASSA 2 Na história do socialismo há um momento, chamado luddista, em que os trabalhadores, resistentes a tecnologias poupadoras de mão-de-obra, quebram as máquinas ou os teares, como se deu originalmente. Em Curitiba, em quase todos os quebra-quebras, por causa do aumento da carne, o povo invadia os açougues e não ficava com as mercadorias e ia quase ao orgasmo queimando dianteiros e trazeiros de vacas e bois, depois de lançar-lhes gasolina em praça pública.
Esse tom autodestrutivo voltado contra o alimento e a ferramenta de trabalho é algo que balança entre a resistência e a irracionalidade. Mais esta, claro.