Lei Mordaça ou corrupção protegida
PUBLICAÇÃO
terça-feira, 04 de janeiro de 2000
Lei Mordaça ou corrupção protegida
Antônio Winkert Souza
A denominada Lei Mordaça, já aprovada na Câmara dos Deputados (Projeto de Lei número 2861/97), vem sofrendo severas críticas, especialmente no âmbito do Ministério Público, sob o entendimento de que se trata de medida que visa abafar os escândalos de corrupção no País e se traduz num flagrante retrocesso democrático.
A mencionada lei, na extensão em que está formulada, acaba por impor, veladamente, uma espécie de censura aos meios de comunicação , proibindo que Promotores de Justiça, Juízes, Delegados, membros do Tribunal de Contas, possam prestar informações acerca das investigações objeto de inquéritos, procedimentos administrativos e ações judiciais, sob o fundamento de se proteger a honra, a intimidade, a vida privada e a imagem das pessoas.
Aos agentes públicos que transgredirem tal norma, poderá ser aplicada pena de detenção, multa e até perda do cargo, além de inabilitação para o exercício de qualquer outra função pública pelo prazo de três anos. Com uma espada desse porte apontada para a cabeça do agente público, fácil é prever que a sociedade, de um modo geral, uma vez mais sairá perdendo, maculando-se o direito fundamental de acesso às informações, a liberdade de imprensa, a devida transparência na administração e a indispensável publicidade dos processos.
Além disso, no rumo inverso da legítima aspiração da sociedade brasileira, que se insurge contra a lentidão da Justiça e contra a impunidade, o referido projeto de lei estabelece, absurdamente, a possibilidade de o interessado ingressar com recurso, perante o Conselho Superior do Ministério Público, contra a instauração de inquérito civil ou procedimento preparatório. Assim, mesmo sendo o inquérito de caráter inquisitivo, sem acusação formal, poderá o interessado dele recorrer. Mais que isso: poderá provocar sua suspensão. Somente na hipótese de ocorrer dano irreversível ao interesse público é que, a juízo do relator, poder-se-á receber o recurso com efeito devolutivo.
E mais grave ainda: nem precisa ser inquérito. Se o Promotor de Justiça, ainda tendo dúvida se é caso de inquérito civil ou não, instaura um procedimento preparatório (como por exemplo, requisita alguns documentos, toma declarações de testemunhas, etc.), poderá o interessado ingressar com o malfadado recurso, suspendendo-o. A investigação é estancada no nascedouro. É o caos.
Saliente-se que o recurso em referência não abrange o inquérito policial. Cabe tão-somente em relação a inquérito civil, onde se investiga atos de improbidade administrativa, ilícitos contra o meio ambiente, saúde pública, etc., cujos agentes de práticas ilegais integram, de regra, segmento social de maior poder econômico e/ou político.
Imagine que, em determinada comarca, o cidadão leve ao Promotor de Justiça notícia de corrupção na administração pública, envolvendo uma dezena de agentes públicos. Cada um deles, aproveitando-se dessa brecha, poderá, isoladamente (primeiro um, depois outro, e assim sucessivamente) ingressar com o recurso, requerendo a suspensão do inquérito ou do simples procedimento preparatório. E certamente o Conselho Superior do Ministério Público será entulhado desses recursos, oriundos das diversas comarcas do Estado. Previsível é que o Conselho levará meses, ou até anos, para apreciar tais recursos, o que dificultará, e até inviabilizará, na prática, a conclusão das investigações. Enquanto isso, as provas já terão sido forjadas, destruídas, consumidas. E a caravana seguirá impune.
Não há dúvida que essa possibilidade de recurso, nunca dantes visto, irá aplainar ainda mais o tão combatido caminho protelatório, instituindo, doravante, uma poderosa rede de pizzaria.
E tem mais: a sociedade precisa saber que o mencionado projeto de lei, em flagrante descompasso com a idéia dominante de se restringir o foro privilegiado, estabelece que, para determinados agentes públicos, a ação de improbidade deve ser proposta perante os mesmos tribunais que os julgariam criminalmente. Para citar apenas dois exemplos, o prefeito e o deputado não mais serão processados por improbidade na Comarca onde eventualmente praticarem atos ilícitos. Os tribunais, mesmo longe dos fatos e ante à complexa e intrincada produção de prova nessa área, passariam a apreciar uma gama enorme de ações civis públicas, sujeitando-se a todos os incidentes processuais decorrentes da instrução judicial. Tal norma, ademais, é inconstitucional, vez que a competência dos tribunais deve ser fixada na Constituição, descabendo ampliá-la por via de lei ordinária.
A perspectiva é extremamente desalentadora. Não se percebe na lei nenhum propósito de facilitar a punição de criminosos ou desonestos. É lamentável que o projeto de lei tenha o aval do Executivo. Caberá ainda ao Senado apreciar o aludido projeto de lei. Espera-se que o verdadeiro espírito de estadista possa iluminar a cada um dos senadores. Caso contrário, a instrumentação jurídica especialmente outorgada ao Ministério Público, defensor dos valores supremos da sociedade, estará deturpada, dificultando ou até inviabilizando os trabalhos de investigação, sobretudo no combate à corrupção.
- ANTÔNIO WINKERT SOUZA é promotor de Justiça em Londrina
