Roberto de Mello Severo
Aqueles que tiveram acesso ao texto do Projeto de Lei de Responsabilidade Fiscal a ser remetido ao Senado, e que também acompanharam os comentários do presidente Fernando Henrique Cardoso, bem como os artigos publicados na imprensa sobre o tema, imbuíram-se de uma perspectiva de melhora no cenário da administração pública dos entes federativos (União, Estados, Distrito Federal e municípios).
Nas hipóteses de concessão de benefícios fiscais, a Lei de Responsabilidade Fiscal prevê que o ente federativo deverá demonstrar previamente o impacto do benefício para as contas públicas (receita corrente). Fica proibido o aumento da despesa com pessoal, nos seis meses que antecedem o final de mandato, podendo ainda a administração pública fazer redução da carga horária dos servidores, com adequação dos vencimentos destes ao novo horário.
As Antecipações de Receitas Orçamentárias (ARO) deverão ser liquidadas até o dia 10 de dezembro do ano em que forem contraídas, bem como não poderão ser realizadas no último ano de mandato, assim como não serão concedidas se houver operação da mesma natureza ainda pendente de quitação.
Outro ponto que vale a pena ser ressaltado é a impossibilidade de o ente federativo contrair dívida no último quadrimestre, a ser paga no exercício financeiro seguinte, sem que haja disposição de capital em caixa para tanto, não incluída a verba para despesas corrente e de capital.
À primeira vista, o texto da futura Lei de Responsabilidade Fiscal projeta um avanço que visa reestruturar nossa cultura de gestão administrativa da coisa pública. Contudo, é necessário abstrair-se a contentação com a futura lei, para analisar sua validade no campo jurídico, de forma a concluir pela legitimidade da proposição normativa que provavelmente terá sua aprovação no Senado.
O sistema federalista adotado pelo Brasil, aproxima-se às vezes de uma confederação, no modelo norte-americano. Isto porque a Constituição designou autonomia dos entes federativos, não estabelecendo o critério de hierarquia entre a União, Estados, Distrito Federal e municípios. Assim, a gestão administrativa de cada ente federativo se perfaz autônoma, o que se convencionou denominar-se pacto federativo.
Essa autonomia é expressa no texto constitucional, junto ao artigo 18, onde se lê que ‘‘a organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.’’ Esta mesma autonomia ainda é ratificada pelos artigos 25 e 29 da Constituição.
A autonomia preconizada pela Constituição, está infecta à divisão dos três poderes e à gestão administrativa de cada ente federativo, os quais adequarão os procedimentos a serem tomados em acordo à realidade econômica e social presente, dentro de um critério de responsabilidade, o qual muita vez é faltante.
O que ocorre é que em numa análise, mesmo que superficial, pode-se verificar que o projeto de lei complementar que desembocará na Lei de Responsabilidade Fiscal, implicará em limitações à autogestão dos entes federativos, culminando com a autonomia prevista na Constituição, vez que estes deverão adequar-se à vontade de lei infraconstitucional, quando disposição constitucional prevê autonomia total de administração de receita e despesa, o que é um paradoxo jurídico.
O problema está em que, por mais que seja brilhante o texto e o objetivo da Lei de Responsabilidade Fiscal, esta esbarra na análise de inserção de proposição normativa, ficando sua validade prejudicada pelo texto constitucional, o que demonstra um risco aos cidadãos que aguardam a lei como panacéia, externando ainda a insistência dos nosso Poder Legislativo, que na ânsia de aprovar projeto de lei, esquece-se de conjugá-la com a Carta Constitucional.
A então Lei de Responsabilidade Fiscal, que será apresentada ao Senado como projeto de lei complementar, deveria outrossim ser Projeto de Emenda Constitucional (PEC), o que poria fim ao risco de uma declaração de inconstitucionalidade, lembrando sempre que se eventualmente submetida a futura lei ao Supremo Tribunal Federal (STF), eventual decisão política (como muitas decisões nos últimos tempos) poderia declarar a constitucionalidade da lei, resolvendo o impasse que com certeza será criado.
Sob outro prisma, há ainda a questão nada jurídica, do cumprimento ou não da Lei de Responsabilidade Fiscal pelos Administradores. Num exercício de memória rápido, pode-se perquirir: alguém cumpriu a Lei Camata, que previa limite de despesas com os servidores civis? Ou ainda, quando a Lei Camata foi revogada pela Lei Complementar nº 96, de 31 de maio de 1999, DOU de 1º de junho de 1999, denominada de Nova Lei Camata, alguém efetivamente cumpriu a nova lei?
Isto porque no Brasil, o fato de haver nova lei em vigor, não se pode traduzir como nova realidade, cumprindo a profetização de Otto Lara Rezende, que dizia que ‘‘Nossas leis são como vacinas: umas pegam, outras não.’’ Resta saber quem paga pra ver.