JOEL SAMWAYS NETO
Constituição pra quê?
Deve estar sendo muito difícil a vida dos professores de Direito, no Brasil. Porque, todos os dias, a história construída por muitas pessoas físicas, por muitas pessoas jurídicas privadas e públicas, através de seus agentes, afrontam a Constituição e as leis do País... E não acontece nada. Ou, se acontece, demora tanto, e é tão pouco divulgado, que ninguém se dá conta das consequências. De que adianta a Constituição, por exemplo, garantir a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem, se a imprensa não liga a mínima e frequentemente faz dessa violação seu ponto forte de vendas? De que adianta a Constituição garantir o direito de propriedade se nenhum proprietário, por mais produtivo e social que seja, vive à mercê de esbulhos anunciados e cumpridos sem-cerimônia? De que adianta a Constituição garantir que ninguém será considerado culpado antes de ser condenado por sentença penal, da qual não caiba mais recurso, se a mídia suspeita, indicia, acusa, condena e executa qualquer brasileiro que apareça no palco de uma notícia? De que adianta a Constituição assegurar que os presos terão respeitadas sua integridade física e moral...?
A afronta da hora envolve o ex-ministro da Defesa Élcio Álvares. A CPI do Narcotráfico apurou que o irmão da assessora (depois disso, ex-assessora) do ex-ministro atuava como advogado de narcotraficantes. A partir daí, a CPI passou a aventar que poderia haver ligações, perigosas ou profissionais (ou perigosamente profissionais), entre o ex-ministro e um grupo de advogados defensores de integrantes do crime organizado, no Estado do Espírito Santo. Declarações da CPI, notícias, reportagens, entrevistas, mexeram, mexeram, remexeram o assunto. Resultado: a tal assessora foi demitida, o comandante da Força Aérea foi demitido (por fazer comentários sobre o fato), e, finalmente, o próprio Élcio Álvares foi exonerado do cargo.
Um dos pontos interessantes da questão foram as declarações do então ministro Álvares, feita em entrevista a uma revista de circulação nacional. Ele disse que qualquer pessoa – ‘‘até o diabo’’ – tem direito a ter um advogado. Isso é o que se ensina nos cursos de Direito. Porque a Constituição também garante que, seja em processo judicial, seja em processo administrativo, acusados em geral e litigantes têm direito ao contraditório e ampla defesa; também assegura que qualquer pessoa que seja presa tem direito a assistência de advogado; também diz que o advogado é indispensável à administração da Justiça, sendo, portanto, inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão. E o estatuto da advocacia dispõe que é função privativa do advogado a defesa perante o Poder Judiciário. Ele pode defender seu cliente mesmo que não esteja totalmente convencido de sua inocência. Até os que confessam o crime precisam ser defendidos por advogado – para que a pena seja justa. É a chamada defesa técnica. Aceitar, ou não, esse tipo de trabalho é uma questão de foro íntimo. Tem advogado que não atua em matéria criminalista; tem advogado que atua. Em alguns países europeus, como a França, os advogados, por princípios éticos profissionais, não atuam na defesa de criminosos sem que antes um juiz o designe.

POMBOS-CORREIO DE LUXO É inegável, no entanto, que em alguns lugares está havendo uma certa banalização das prerrogativas institucionais da advocacia. Há líderes do narcotráfico que, embora presos em presídios de segurança máxima, no Rio de Janeiro, continuam dirigindo suas quadrilhas. Alguns deles contam com cerca de vinte advogados de defesa. Como advogados podem conversar com seus clientes estejam onde estiverem, suspeita-se que são os próprios advogados. Então, com a proibição do uso de telefones celulares na prisão, suspeita-se de que são os próprios advogados que estariam fazendo as vezes de ‘‘pombo-correio’’, levando mensagens dos tais líderes ao seu pessoal. Estando proibido o uso de telefone celular na cadeia, a hipótese dos pombos-correio de luxo está sendo investigada com atenção. Talvez isso seja subproduto da proliferação irresponsável de cursos de Direito no Brasil. Aumenta a quantidade, cai a qualidade. Se bem que o ensino de princípios ético-morais, tendo a ver com o homem, não é, necessariamente, tarefa da universidade, apesar da disciplina de deontologia (que tem a ver com o exercício da profissão). Além disso, claro, há médicos que praticam cirurgias de aborto, há padres que se aproveitam do sacerdócio, há engenheiros que fraudam execução de projetos etc.
SIGILO DA FONTE O chefe da Casa Civil da Presidência da República escreveu uma carta ao jornal ‘‘Folha de S. Paulo’’, publicada no dia 15. Foi para replicar determinadas afirmações feitas pelo referido jornal, na coluna ‘‘Painel’’, a respeito do jantar que reuniu o presidente Fernando Henrique Cardoso e o presidente do Congresso, Antonio Carlos Magalhães. As notas publicadas davam conta de que o jantar tinha sido ‘‘duro’’, que ali fora combinado um ‘‘cessar-fogo’’, que ocorreram ‘‘recuos’’, que FHC teria dito a ACM que da próxima vez o chamaria de ‘‘troglodita’’. Parente afirmou que isso era fantasia e revelava o ‘‘grau de desinformação da fonte utilizada pelo colunista’’. Em resposta, o editor da coluna disse que ‘‘o clima gelado e duro foi confirmado por três fontes, uma das quais com gabinete no Palácio do Planalto’’, e, entre outras considerações, que o próprio presidente teria relatado o uso do termo ‘‘troglodita’’ a auxiliar e a um dos ‘‘caciques da aliança governista’’. Finalizou dizendo que a informação tinha sido dada por FHC a políticos do PSDB, do PMDB e do PFL.
Destaco, apenas, o fato de a informação ter chegado ao jornal por ‘‘uma fonte que tem gabinete no Palácio’’, e que o presidente teria ele próprio relatado coisas a ‘‘um auxiliar’’, a ‘‘um cacique da aliança governista’’ e ‘‘a políticos’’ dos partidos aliados. Notaram os sujeitos indeterminados? Quem disse que o presidente dissera aquilo que o chefe da Casa Civil foi incumbido de dizer que ele não dissera? Jamais saberemos. É o sigilo da fonte, resguardado na Constituição. Agora, como saber, com certeza, se as tais fontes não mentiram ao jornalista? Adianta ele jurar que as fontes são pessoas idôneas? Notou, leitor, como a verdade jornalística é fluídica? É parecido com uma fita magnética com uma gravação clandestina de uma conversa telefônica contendo assunto gravíssimo – só que sem a fita para ser periciada. E se a fonte ouviu mal, ou realçou subjetivamente certos aspectos objetivos? Essas fontes podem até nunca ter existido e tudo não passar de armação, e o assunto já foi publicado, já entrou na mente coletiva, já elaborou suspeitas e conclusões... E já foi ontem. Azar de quem for atingido pela publicação.
Se você, leitor, estremeceu ao perceber sua fragilidade pessoal diante do poder da imprensa e suas fontes sigilosas, eu só posso consolá-lo dizendo que compreendo seus tremores.
- JOEL SAMWAYS NETO é escritor e procurador do Estado em Curitiba, e substitui o jornalista Luiz Geraldo Mazza, que está em férias