JOEL SAMWAYS NETO
Estradas perigosas
Temporada de verão, temporada das chuvas, as inundações de sempre, os desmoronamentos de sempre; temporada de férias, os congestionamentos rodoviários de sempre, as colisões de sempre... E as explicações de sempre. O que me parece interessante é a admissão, à linguagem pátria, de algumas frases um tanto ambíguas sobre o assunto. Quem poderia interpretar o significado de uma ‘‘estrada perigosa’’?
Essa questão retorna a cada acidente automobilístico de grandes proporções. E aí podemos ter ‘‘retas deslizantes’’, ‘‘curvas da morte’’, ‘‘pista com depressão’’ ou ‘‘escorregadia’’, conceituações que tentam explicar os motivos da batida. Sim, tem também a participação dos motoristas, estressados, drogados, alcoolizados, desequilibrados ou simplesmente exibicionistas, que fazem mau uso das pistas. Esses é que poderiam ser classificados como motoristas ‘‘perigosos’’, que, do jeito que trafegam, colocam em risco sua própria vida e a de terceiros.
Mas a estrada está lá, obra de engenharia, talvez defeituosa, mal-acabada. Porém, se estiver corretamente sinalizada, por mais fechadas e ‘‘centrífugas’’ que possam ser suas curvas, não há razão para denominá-la ‘‘perigosa’’. Efetivamente, há curvas pelas quais não se pode passar a 110 km/h. Daí a sinalização advertir para a necessidade de reduzir a velocidade para uns seguros 50 km/h. Se você respeitar a sinalização, com o perdão do clichê, não perderá a viagem (a não ser, é claro, que seja abalroado por um maluco que não tem a mesma opinião que a sua). Agora, óleo na pista, areia na pista, prego na pista, é, por óbvio, caso de polícia.

TRAGÉDIA ARGENTINA Aposto que depois dos dois gravíssimos acidentes ocorridos na BR-470, próximo a Pouso Redondo, em Santa Catarina, que vitimaram, juntos, 44 pessoas, as autoridades brasileiras irão observar melhor aqueles trechos da estrada. Decerto, irão encher de placas de advertência, retocarão a pintura e colocarão sonorizadores. Foi o que fizeram no Paraná, na BR-277, naquela primeira curva da Serra de São Luiz do Purunã, sentido interior–capital. Foi preciso que um ônibus lotado de turistas, que se dirigiam à Oktoberfest, passasse direto pela curva, provocando a morte de muitos passageiros, para que o trecho recebesse uma sinalização decente. Evidentemente, a falta de avisos adequados, ali, não deve ter sido a única causa do acidente – mas sem dúvida contribuiu bastante para o fato. No caso dos ônibus argentinos, há indícios de que a principal causa foi o excesso de velocidade.
Chama a atenção a informação divulgada pela Rádio CBN (dia 14), passada por um correspondente em Santa Catarina. Quando essa estrada foi inaugurada, nos anos 60, o então ministro dos Transportes Mário Andreazza chegou a constatar que havia problemas nesses pontos (muito próximos um do outro) da pista em que ocorreram os acidentes.
TRÁGICA ENGENHARIA Isso sim é relevante. Procurar a medida da responsabilidade dos engenheiros que construíram a obra. Porque há estradas que desafiam até o mais prudente, diligente e perito dos motoristas. São estradas que descem vertiginosamente e terminam numa curva fechada, por exemplo. Era inevitável fazer uma coisa dessas? Que dizer das curvas que têm uma inclinação que joga para o acostamento o veículo, ainda que em velocidade compatível? Qual a explicação para haver taludes com ângulo de praticamente 90 graus? Aliás, essa situação é muito engraçada. A pista é construída com um talude quase despencando, e aí eles colocam uma placa avisando que ali é local de desmoronamento. E daí? O motorista faz o quê? Pára o carro e atravessa o trecho a pé? Aumenta a velocidade do veículo para transpor o perigo o mais rápido possível? A meu ver, a placa serve para o caso de uma pedra realmente cair em cima do automóvel – pelo menos, a vítima não poderá reclamar de que não fora avisada.
Certa vez, conversei com um engenheiro dessas empreiteiras que vivem participando de licitações de obras públicas, e que já construíram muitas estradas no Paraná. Perguntei-lhe o porquê daquelas barbaridades de engenharia de rodovia, coisas que até os leigos sabiam que estavam erradas. Exatamente o porquê ele não respondeu. Mas afirmou que, no projeto, as estradas são perfeitas, e todas as medidas de segurança estão previstas. Os problemas, continou, surgem é na execução do projeto. E lavou as mãos alegando que a responsabilidade pela execução da obra não era da empreiteira, mas do órgão público competente. Indaguei, então, se ele estava querendo dizer que as obras rodoviárias não eram executadas de acordo com o projeto por decisão do tal órgão público. O engenheiro ficou em silêncio. Ô, tema bom para ser submetido a uma comissão parlamentar de inquérito, não? Chamar os responsáveis pelos ditos órgãos públicos competentes e pedir-lhes que expliquem, tecnicamente, os motivos de terem permitido a construção de uma estrada tão defeituosa. E, se for verdade que os projetos não são cumpridos, procurar saber se isso traz alguma economia aos cofres públicos.
ÍNDIOS & DESCOBRIMENTO O presidente da Funai disse, em entrevista à ‘‘Voz do Brasil’’ (dia 13), que, por conta da celebração dos 500 anos do Descobrimento, os índios farão uma marcha reivindicando mais participação na sociedade. Com efeito, a julgar pela forma como este País foi desbravado, os índios não têm lá muitos motivos para celebrar. E querer se integrar mais na vida social, política, econômica e cultural do Brasil me parece ser não uma solicitação mas um direito. Aliás, a tese de doutorado em Direito Público, do presidente da Funai, trata disso, do fato de os índios serem ainda hoje um grupo social ‘‘invisível’’.
Quem sabe se, no ensejo dessa marcha, pudesse ser revisto o regime tutelar ao qual os índios estão sujeitos, afinal o Estatuto do Índio já tem mais de 25 anos. Por outro lado, a sociedade brasileira poderia ser melhor informada a respeito da utilização das terras indígenas. Afinal, com uma população que talvez não chegue a 200 mil habitantes, os índios possuem terras cuja área supera a de alguns países europeus. Certamente, o manejo ambiental desse território deve ser exemplar e os brasileiros deveriam tomar conhecimento disso. Senão, episódios isolados acabam dando rótulo, como naquela vez em que uma reportagem de TV flagrou alguns índios e brancos derrubando árvores de uma reserva. A polícia veio, prendeu os brancos, apreendeu as motosserras e não ligou a mínima para os índios. Eram ‘‘invisíveis’’ mesmo.
Do ponto de vista antropológico e sociológico, como está a relação entre esses índios e 160 milhões de brancos? Como se dará, para futuro, o processo de aculturação, supostamente inevitável? Enquanto aguardo as explicações dos especialistas, verifico, estarrecido, o horror causado pela iniciativa de alguns grupos religiosos, de catequizarem os índios. A forma como são substituídas suas crenças originais, harmonizadas com a Natureza, pela idéia do pecado, do sentimento de culpa, do medo dos castigos do Deus dos brancos, é algo que merecia ser verificado melhor pelo poder público. Não causa admiração, diante disso, que, depois de lhes inculcar o medo do inferno, venham outros brancos oferecendo bebidas, e o alcoolismo venha se tornando um grave problema social também entre os índios.
- JOEL SAMWAYS NETO é escritor e procurador do Estado em Curitiba, e substitui o jornalista Luiz Geraldo Mazza, que está em férias