O tratamento fundamentalista e ignorante (com o perdão do pleonasmo) que parcela sem luz de nossa sociedade reservou à menina de dez anos, estuprada pelo companheiro de sua tia que a engravidou, não só traduz como se reveste na apoteose do momento estúpido e negacionista que vivemos...

Quando nós outros acreditávamos impossível qualquer ignorância desbancar a terra plana e/ou o contágio de rebanho como solução da gripezinha, somos chamados a enfrentar a dura realidade, na cena execrável de um rebanho aglomerado em frente a um hospital no Recife, a xingar (cadela no cio) uma menina de dez anos que fazia um aborto (legal) para retirar o fruto do estupro que sofrera...

E lá nave và, suposto que o mundo está de patas arriba...

Onde foi que nos perdemos? Não sabemos, mas desenhar no desencanto da menina mulher de dez anos um instrumento de disputa política (vejam quem esparramou na rede o nome da pequena violentada e o endereço do hospital que se lhe atendia) é o passaporte para onde estamos.

Numa estúpida subversão de valores, a pequena violentada passou a ser alvo da raiva e do desamor de quem, não sabendo amar, ensina a odiar. Pior: construíram sua sofrível narrativa em nome da vida e de Deus...

Viver é melhor que sonhar, já ensinou Belchior, mas há quem não ouça senão hinos e viva a repetir antigas palavras de ordem, há tempos introjetadas, cujo significado nem de longe conhecem, seja por ignorância, seja por maldade ou, pior; pelos dois...

No ponto, façamos uma prece pela tantada de violência que o homem cometeu e segue a cometer em nome do Pai...

Deveras, quando o mal anda de mãos dadas com a ignorância, quase sempre o mal sopra à ignorância o uso da palavra de Deus, como que querendo se aproveitar do ignorante que teme ao Criador e, assim, dar um novo significado ao verbo...

Quando odiamos ressignificamos nossa origem, que é o amor com que o Pai nos concebeu e a natureza tratou de fazer evoluir, num darwinismo criacionista que explica a ciência e respeita o Criador.

Nem Darwin, tampouco e muito menos Cristo, entrementes, explicam o fundamentalista – e não seremos nós outros a fazê-lo, ainda que seja extremamente simples retratá-lo:

O fundamentalista não é senão um apedeuta maldoso, cujo coração foi capturado pela ausência da vida, pela falta do som do dia, pela negação da marcha do tempo, pelo descaso com a abelha fazendo mel...

Para ele vida e morte são atributos do ser e não estados de consciência. Assim, estar vivo difere de estar morto por conta única e exclusiva da matéria que anima o corpo – longe estando o caminho que a jornada da vida cumpriu para nosso cadafalso...

Foi esse apequenamento cidadão que armou a manifestação à frente do hospital, harmonizando os hinos de ódio com que etiquetaram a dor sem igual da jovem violentada.

O fundamentalista que lá compareceu para, pretensamente, combater o aborto (que era legal, dada a situação do estupro de que foi vítima a criança feita mulher pela violência) não fez senão sobrepor sua irracional ferocidade à dor da pequena, deixando de fazer qualquer diferença em um debate sério sobre o tema – ainda que seja imperioso destacar que esta pauta nos pareça eminentemente feminina, na medida em que quem engravida é a mulher.

Ademais, não é nosso intento discutir aborto aqui, nas linhas desta Folha. Nosso desidério é combater com tinta a insânia de quem não respeita a dor de uma menina de dez anos, violentada pelo companheiro de sua tia, que optou por retirar o fruto de sua morte opaca...

Quando a ignorância que gera o mal arma uma aglomeração raivosa em frente a um hospital, para hostilizar e gritar frases de ódio contra uma menina de dez anos que padeceu de nossa proteção, sugerindo que ela seria uma criminosa, quando não é senão vítima extraordinária de nosso desencanto social, fica evidente que estamos doentes...

Nenhuma sororidade com a menina estuprada, nenhum joie de vivere em seu futuro. Apenas o etiquetamento social que as raivosas senhoras fundamentalistas lhe colaram...

A fé pode salvar (e salva!). Já a entrega cega à paixão dos tolos, animada na irracionalidade maldosa da crença fundamentalista, jamais poderá valer por alguma verdade – quiçá pela dor da menina mulher que foi estuprada, xingada e atacada.

Tristes trópicos. Seguem fazendo muita falta os que nos ensinaram a amar.

Uma flor para você, minha pequena menina de dez anos. Eu respeito a tua dor.

João dos Santos Gomes Filho, advogado.