Imagem ilustrativa da imagem INFÂNCIA ABANDONADA - 'Adoção não faz parte da agenda política'
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Preocupados com o elevado número de crianças abrigadas, à espera de adoção, membros do Ibdfam (Instituto Brasileiro de Direito de Família) redigiram projeto de lei, que tramita no Senado sob o número PLS 394/2017, para criar o Estatuto da Adoção, em substituição às regras previstas hoje no ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente).

O texto, que tenta dar agilidade à adoção em detrimento da permanência da criança com a família extensa – avós, tios e outros parentes –, recebeu críticas pesadas de entidades ligadas à infância, como o Conanda (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente) e o Movimento pela Proteção Integral de Crianças e Adolescentes, constituído por diversas entidades do País. Para este movimento, o projeto idealizado pelo Ibdfam cria "mecanismos de adoção paralelos, que abdicam ou minimizam formas de controle, supervisão e acompanhamento por parte do Estado nas colocações de criança em família substituta".

A vice-presidente do instituto, Maria Berenice Dias, que aposentou-se na função de desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, rechaça as críticas e afirma que o "número absurdo" de crianças institucionalizadas justifica a mudança, que deverá acelerar os trâmites burocráticos para a adoção.

Para ela, que hoje atua como advogada especializada em direito homoafetivo, direito de família e sucessões, recém-nascidos, por exemplo, não têm qualquer vínculo com a família extensa e, neste caso, o melhor é permitir a adoção o mais rápido possível, antes que fiquem muito tempo nos abrigos e passem a ser crianças "inadotáveis". "Em face de uma concepção equivocada e superada é que se fica anos esperando encontrar alguém da família que queira a criança enquanto ela fica institucionalizada e acaba perdendo a chance, muitas vezes, de ser adotada", afirma.

Como fazer para agilizar os processos de adoção?
O que nós estamos procurando é uma mudança de paradigmas porque, como o ECA tem 30 anos, ele privilegia muito a família biológica e coloca a adoção como o último recurso. Esse conceito mudou: tem tese de repercussão geral do STJ (Superior Tribunal de Justiça) reconhecendo que a filiação socioafetiva prevalece sobre a filiação biológica.

O que prevê o PLS 394/2017, que cria o Estatuto da Adoção?
O propósito do Estatuto da Adoção não é preterir a família extensa, mas não cabe ao Poder Judiciário - não está escrito em parte nenhuma até porque não tem estrutura para isso - procurar as famílias extensas das crianças. Recém-nascido não tem esses vínculos (de convivência e afetividade) com ninguém, então não tem que procurar ninguém. Acho que o movimento tem que ser o contrário, em vez de o Estado, com todas as suas dificuldades, ficar caçando um parente que nem sabe que a criança nasceu, nem sabe que existe, nunca viu, e a criança não tem esse vínculo... e isso se eterniza e as crianças se tornam "inadotáveis". O movimento deve ser o seguinte: que o Estado procure os pais e veja se, com algum tipo de auxílio, conseguem ficar com as crianças. Agora, quando não é o desejo da família extensa, com certeza a melhor solução é encaminhá-los à adoção.

Com relação à família extensa - avós, tios e parentes - eles que têm que procurar as crianças junto aos Juizados da Infância manifestando o desejo de ficarem com esse seu parente. Mas antes de entregar é necessário um acompanhamento, um estudo psicossocial, que não é feito. Simplesmente a criança é entregue porque há o vínculo de sangue e a gente sabe que 90% das devoluções de crianças são feitas pelas famílias extensas, que não querem ficar com a criança.

A família extensa será preterida se a mudança for aprovada?
Eu também vejo que, ao conviver na família extensa, a criança sempre terá o passado no seu presente, ela sempre vai ter uma avó, um tio, que não vai ser o pai e a mãe; e também, neste caso, é concedida a guarda e a guarda não concede nenhum direito - direito previdenciário, direito de herança a essas crianças. Então, essas entregas a famílias extensas não atendem o melhor interesse da criança porque ela fica numa situação ainda de vulnerabilidade. Entre família extensa que não procura, que precisa ser procurada pela Justiça, e alguém que está há anos cadastrado para a adoção, e já foi superavaliado, sem dúvida nenhuma, há que se priorizar a adoção, que é um vínculo socioafetivo prioritário.

Os recém-nascidos, as crianças brancas e saudáveis têm mais chances de serem adotadas? Qual a probabilidade em relação às crianças mais velhas, negras e doentes?
Crianças com algum tipo de necessidade especial, grupos de irmãos, crianças não brancas, adolescentes, de fato, têm menos chances de serem adotadas rapidamente do que crianças recém-nascidas, mas não se pode culpar os candidatos à adoção por quererem crianças porque a eles simplesmente não é dada nenhuma possibilidade ou chance de conhecerem as crianças institucionalizadas. Ninguém adota uma criança especial, com microcefalia, se primeiro não se apaixonou pela criança. E essa é uma das propostas do Estatuto da Adoção: abrir os abrigos não só para candidatos cadastrados, mas para a sociedade, que possa conviver, compartilhar, para brincar, para fazer festas de aniversários, e aqueles que mostrarem interesse, que se vincularem com alguma criança, se submetem a toda aquela testagem para adotar aquela criança. Não vejo que isso vai em prejuízo de ninguém.

Há uma estimativa de quantas crianças estão em abrigos, à espera de adoção no País?
Os únicos dados que existem sobre crianças que estão em abrigos, institucionalizadas, estão no site do CNJ (Conselho Nacional de Justiça). O CNJ traz o número de crianças disponíveis para adoção na base de 8 mil e 40 mil crianças abrigadas sem estarem disponíveis, ou seja, reflexo dessa demora um tanto quanto perversa. Mas Brasil afora existe um número que se calcula por volta de 100 mil de crianças que estão abrigadas sem o conhecimento sequer do Poder Judiciário.

Em média, quanto tempo uma criança fica em uma instituição?
O tempo que uma criança fica institucionalizada depende, no fundo, muito mais do comprometimento do magistrado, do Ministério Público, do próprio serviço interdisciplinar que nem sempre tem e dessa mentalidade: se se esgotam mil tentativas de tentar fazer a mãe sair do crack, que nunca sai, do pai parar de beber, que também normalmente não para; ou que eles construam uma casa ou se insiram no mercado de trabalho. Depois se vai atrás da família extensa, chega a procurar dois ou três anos, enfim, e as crianças se tornam "inadotáveis", passaram da idade, que é acima de 8 anos, para serem adotadas. Há lugares que são extremamente rápidos porque o juiz tem esse comprometimento - ele mesmo liga para as pessoas - e tem outros que esquecem as crianças lá... O tempo mesmo não tem como regular.

Quais os problemas da adoção direta?
Eu confesso que pessoalmente sou muito a favor da adoção direta, acho que as mães têm o direito de escolher com quem querem que seus filhos fiquem, porque têm alguma identidade, ou porque é patroa, ou porque professa a mesma fé. Só acho que isso precisa ter o controle do Poder Judiciário, que este desejo de entrega seja submetido ao Poder Judiciário, e as pessoas candidatas à adoção, mesmo que não estejam cadastradas, precisam passar por todo esse procedimento e deve haver o acompanhamento da criança.

Ou isso ou o que acontece no Nordeste, por exemplo, onde diz-se que 90% das crianças são entregues diretamente porque as mães querem que os filhos sejam adotados, não querem que os filhos fiquem abrigados, muitas vezes, não querem nem que a família extensa saiba que elas tiveram o filho. Esta é uma prática perversa que não atende o melhor interesse da criança, mas é tão burocratizado, há tanta barreiras para se adotar, que no fundo é o que as mulheres fazem. Este é o mínimo. Muitas vezes, jogam as crianças no lixo.

O problema da adoção depende mais de alteração legislativa ou de vontade de adotar?
Vontade de ter filhos muitas pessoas têm, vontade de adotar também. Então este descompasso decorre da falta de uma legislação mais atual, mas específica, priorizando a convivência familiar dessas crianças, atendendo ao comando constitucional de assegurar às crianças, com prioridade absoluta, a convivência familiar. Convivência familiar não quer dizer família biológica. Existe uma realidade severa: o cadastro nacional de adoção não existe, não funciona, faz dois anos que não se movimenta, não é integrado.

O Ibdfam tentou durante anos esta atualização, esta reformatação que não foi feita e que se chocou com esse número assustador de crianças, que só cresce. E a situação se agrava mais por conta dessas técnicas de reprodução assistida, as pessoas fazem filhos e nesta hora sobra uma criança no abrigo. É mais rápido, não se sujeita a nada, e esta tem se sido a postura das pessoas. Nós temos que nos atentar a isso, em face desta nova realidade. Nós temos que facilitar e dar prevalência à adoção, que é uma preocupação que não se enxerga nas políticas públicas atuais.