Há cravos em meu jardim...
PUBLICAÇÃO
sábado, 27 de abril de 2024
João dos Santos Gomes Filho, advogado
Em 25 de abril comemoramos, nós portugueses e também os democratas outros do mundo todo, o cinquentenário (meio século baby) da revolução dos cravos (1974), que é o apelido magnífico que se dá a revolução portuguesa, que atirou ao lixo da história a ditadura salazarista.
O apelido se deve ao inusitado congraçamento que se deu entre o cidadão revolucionário português com os instrumentos de repressão (polícia e exército) do estado ditatorial, naquilo que durante a ocupação de suas ruas, os lusitanos se multiplicaram na entrega de flores (ei-lo, o cravo) aos soldados repressores.
Há inúmeros registros (fotográficos e em vídeos) de soldados com flores (cravos) espetadas em seus rifles, engatadas em suas orelhas, em suas mãos, seus bolsos, na cinta e até nos veículos táticos que ocuparam as ruas – no que pergunto: ‘Quantas ruas tem Lisboa’, Amália?
Deveras, os patrícios portugueses fizeram sua revolução sem qualquer derramamento de sangue e isso, por si só, é extraordinário. Ademais e para felicidade de um mundo ainda e então prisioneiro da guerra fria, literalmente demonstraram a possibilidade da flor vencer o canhão.
Para além da grandeza telúrica e metafórica (a um só tempo) das flores que substituem os disparos, de lembrar que a história registra, naquilo que o soldado português se recusou a abater o seu irmão de infortúnio.
Não tenho intenção, aqui e agora, de falar uma linha do ditador execrável (Salazar), mas sim de um povo que abraçou a ideia de liberdade e soube combater o aparato de repressão distribuindo flores.
Há demasiada beleza e gigantesca inteligência nessa ação, suposto que as democracias não são resgatadas (ao menos não deveriam ser) para, no instante subsequente, se impregnarem de elementos repressivos que (ainda por caminhos diversos) sigam o rastro da morte.
Em Portugal, no 25 de abril de 1974, literalmente as flores venceram o canhão!
Demais disso, importante lembrar que a ditadura salazarista se deve ao golpe militar de maio de 1926, que desaguou na eleição presidencial de Oscar Carmona em 1928. Durante seu mandato Carmona instituiu um regime (Estado Novo) de viés fascista, lastro nefasto da Constituição de 1933, que alavancou salazar ao poder.
O ditador perdurou até 1968 quando, ao cair de uma cadeira, sofreu severa lesão cerebral, sendo substituído por Marcello Caetano, que governou ilegitimamente até ser deposto no 25 de abril de 1974 – data oficial da metáfora vandreliana, onde a flor vence o canhão.
O fascismo imposto pelo estado novo português atravessou quatro décadas, causando dor e desilusão, esparramando sangue lusitano no solo abençoado de além-mar. A vida, nas décadas de ditadura, se perdeu em morte e tortura – enfim tangidas com a revolução dos cravos.
É de se admirar, portanto, um povo que faça a própria história pelo viés circunstancial de lutar pela redemocratização com as flores de abril. Isso dá medida (grandiloquente) da paixão de uma gente que, por tristeza, perdeu o medo.
Eram outros os tempos. A noite era jovem (não tanto) e nossas angústias revelavam as cicatrizes do malmequer, enquanto uma gente tangida por quatro décadas de mais uma das muitas ditaduras pelo mundo, ousou tomar o próprio destino às mãos...
Vou sempre lembrar a grandeza do povo português, até porque confesso minha dependência literária de Camões, Fernando Pessoa, Sá Carneiro, Florbela Espanca e, principalmente, de um moçambicano que escreve em língua portuguesa (Mia Couto).
Uma gente tão urgente que me encanta, naquilo que reproduz beleza e edifica metáforas fatalistas e históricas por meus dias de vivência. Isso é mais do que tenho vivido em circunstâncias desenhadas pelo cotidiano de além-mar.
Assim e por tudo que a vida me concedeu, não posso deixar o 25 de abril passar em brancas nuvens, ainda que o céu teime em estar gris por aqui, na conta da disputa civilizatória que as demandas do capital impõem ao nosso viés cotidiano.
Salve, então, no 25 de abril o altivo povo português que, para além de Manuel Joaquim, legou a grandeza de ‘corações de sereno jeito’, onde há ‘distância entre intenção e gesto’, suposto que, ‘se a sentença se anuncia bruta, mais que depressa a mão cega executa, pois que senão o coração perdoa’.
Tristes trópicos. Saudade Pai – de você e de Trás os Montes!
João dos Santos Gomes Filho
Advogado