O Brasil tem índices positivos no combate ao tabagismo. Signatário da Convenção Quadro da OMS (Organização Mundial da Saúde) para o Controle do Tabaco, o País foi premiado por ser o segundo a alcançar a meta em ações contra o vício. Conseguiu atingir, segundo o Inca (Instituto Nacional de Câncer), uma prevalência de fumantes de 9,3%. Em 2006, o percentual era de 16,2%.
No entanto, se o cigarro convencional já não é tão desejado, a indústria busca meios alinhados com a tecnologia para garantir a expansão do mercado: os cigarros eletrônicos. “A indústria está tentando se reinventar nesse cenário, usando um estilo de vida high-tech”, argumenta Tânia Cavalcante, médica do Inca. O instituto, do Ministério da Saúde, lançou um manifesto defendendo a manutenção de resolução da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) que proíbe a comercialização de cigarros eletrônicos no Brasil.
Os fabricantes alegam que o produto provoca menos danos do que os cigarros tradicionais. Já o Inca diz que evidências científicas mostram que cigarros eletrônicos são atrativos para a iniciação de não fumantes e que, mesmo no vapor liberado, há substâncias cancerígenas que podem causar danos celulares e aumentar a chance de infarto agudo do miocárdio e de asma.
O ideal, de acordo com a médica Tânia Cavalcante, médica do Inca, seria reduzir ainda mais o consumo. “Temos que ter essa meta de cigarro zero, mas com o pé no chão, uma vez que o mercado é legalizado”, ressalta.
O Brasil foi o segundo país a alcançar a meta da OMS em ações contra o tabagismo. Dados do Ministério da Saúde mostram redução significativa de fumantes no País. Caminhamos para um Brasil sem cigarro?
Essa é uma expectativa, mas é muito difícil. Alguns países como Canadá e Nova Zelândia já lançaram até um grande desafio, que é o país sem cigarro, com prevalência de fumantes em torno de 5% ou menos. O Brasil, nessa última pesquisa, já bateu a meta, conseguiu atingir uma prevalência de 9,3%, o que é histórico. Sabemos que atuar no enfrentamento das drogas é bastante difícil, e a nicotina é uma droga que causa dependência. Temos que ter essa meta de cigarro zero, mas com o pé no chão, uma vez que o mercado é legalizado e as empresas de tabaco estão sempre buscando assediar crianças e adolescentes. É um enfrentamento muito difícil, mas não impossível. Temos a expectativa de que o Brasil chegue nessa situação de cigarro zero.
Pessoas com escolaridade menor tendem a fumar mais?
É um conjunto de situações. Pesquisas nacionais como a Pesquisa Nacional sobre Saúde, feita em 2013, e a Pesquisa Especial sobre Tabagismo do Ministério da Saúde e do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), feita em 2008, mostram um alto nível de conhecimento da população sobre o vício do tabagismo, inclusive em diferentes classes sociais. A gente está tratando de uma doença, de uma dependência química. No Brasil, a proporção de fumantes tende a se concentrar nas pessoas de menor renda e escolaridade. É possível que o menor acesso à informação e o maior acesso a cigarros do contrabando forme um conjunto de situações que favoreça isso, de maior prevalência de fumantes em pessoas de baixa renda. Mas o que temos visto é que mesmo nas populações de menor renda e escolaridade há uma queda significativa da proporção de fumantes.
O Paraná tem um índice maior de fumantes por conta dessa proximidade com o Paraguai e a entrada de cigarro contrabandeado?
O Inca faz uma análise da proporção de consumo de cigarros ilegais. Nos Estados que fazem a rota de contrabando de cigarros, que está muito bem mapeada pela Polícia Federal e pela Receita Federal, a gente percebe que a queda na prevalência de fumantes ou não acontece ou há até uma certa tendência de crescimento. Observa-se que a proporção do consumo de cigarros ilegais entre os fumantes remanescentes nesses Estados é maior do que a média nacional. O acesso ao cigarro mais barato do contrabando desestimula muitas vezes um fumante que poderia estar mais propenso a deixar de fumar por conta do cigarro caro.
Estamos falando de pessoas que têm dependência química. Então o que temos visto hoje é essa situação, os Estados que têm maior “invasão” de cigarros contrabandeados têm menor queda de prevalência ou até mesmo uma tendência de aumento. Mas, de maneira geral, no Brasil como um todo, há uma queda da prevalência de fumantes, mesmo com o aumento do consumo de cigarros ilegais. Estamos diminuindo o número de fumantes.
O cigarro foi na década de 1970 um sinal de luxo e glamour. Hoje, com o retorno de vitrolas e objetos retrô, o modismo pode abranger também o retorno do cigarro?
Não. Hoje no Brasil e no mundo o cigarro passa a ser de certa forma rejeitado. As pessoas tendem a fugir do cigarro, é um produto malvisto. Houve uma inversão de representação social de que o cigarro era um atributo de elegância, de estilo de vida. Durante muito tempo isso foi construído pelas propagandas. O cigarro sempre estava presente nos momentos de aventura que as propagandas mostravam, com rock. Hoje na nossa sociedade está muito claro que há uma representação social negativa do cigarro, do tabagismo e do próprio fumante hoje, infelizmente, porque é uma pessoa que tem dependência química.
A gente vê a sociedade estigmatizando o fumante. É muito claro que o cigarro não tem volta. Por outro lado, as empresas tentam agora reverter essa situação de redução de demanda global de consumo de cigarros, procurando se reinventar nesse cenário do mercado de nicotina. Qual é o caminho que estão buscando? O cigarro eletrônico e o cigarro de tabaco aquecido. Estão pegando carona em uma visão de redução de danos porque os cigarros eletrônicos e o próprio cigarro de tabaco aquecido são duas variantes de fornecimento de nicotina.
E como essas variantes funcionam?
O cigarro comum queima o tabaco para liberar nicotina, gerando fumaça. Gera alcatrão e monóxido de carbono. O cigarro eletrônico aquece um líquido com nicotina e fornece nicotina sem fumaça. É vapor. E por isso é apresentado como um produto com potencial de reduzir danos para os fumantes, partindo de uma premissa de que as pessoas fumam pela nicotina, mas morrem pelo alcatrão, que é gerado pela queima.
Tem uma outra categoria de fornecimento de nicotina que é o cigarro de tabaco aquecido. Não há autorização de venda no Brasil, mas em outros países isso é vendido. Ele aquece folhas de tabaco em uma quantidade bem pequena e libera um vapor que tem menos alcatrão e menos nicotina do que o cigarro convencional. Então a indústria está tentando se reinventar nesse cenário, usando um estilo de vida high-tech. São produtos altamente sofisticados, com formato de caneta, de pen drive.
Além disso existe o narguilé, que é uma forma de se confraternizar. É um produto que tem risco. Um narguilé pode equivaler a mais de cem cigarros em termos de substâncias tóxicas. Outros países criam lojas com esses produtos, tentando pegar carona nesse mundo dos jovens.
Os produtos são apresentados como redução de danos, mas redução de danos seria se o produto ficasse limitado aos fumantes que não querem deixar de fumar. Mas o que estão fazendo é direcionar o produto para os jovens, principalmente aos não fumantes. A Anvisa, desde 2009, proíbe o mercado desses produtos. Mas se você colocar no Google “cigarro eletrônico comprar”, vai ver que já está no Brasil. Apesar da proibição, o mercado brasileiro está sendo invadido por essas novas formas de fornecimento de nicotina.
Não vejo com muita preocupação o retorno do cigarro tradicional, de ser essa coisa de desejo como construíram no passado. A nossa preocupação na área de saúde pública é com esse novo caminho que eles estão encontrando para manter a dependência de nicotina em expansão, com os cigarros eletrônicos e os de tabaco aquecido.
Mesmo com a proibição, ainda há em tabacarias as essências para cigarro eletrônico.
Estão invadindo. Infelizmente não só nas tabacarias, mas na internet, nos mercados populares. O que é pior é que estão colocando esses produtos no mercado sem nenhuma das regras da Convenção-Quadro para enfrentamento ao tabaco. Nesse tratado, os países que ratificam são obrigados a adotar várias medidas para restringir o mercado, como proibir a propaganda, colocar as advertências com fotos nos produtos, proibir uso de aditivos que dão sabor, colocar política de preços, aumentar os impostos para tornar o produto menos acessível. A regra da Anvisa conseguiu retardar um pouco essa entrada, mas há sites brasileiros vendendo. Essa é uma grande preocupação, que a política nacional de controle do tabaco possa ser afetada por essa reinvenção.
Se uma pessoa fuma por um período na juventude e para, ainda poderá ter consequências disso na velhice?
Isso tudo depende. Não é uma regra matemática. Tem vários fatores que podem influenciar. Seja o tempo de exposição (quantos anos passou fumando), a intensidade (quantos cigarros fumava por dia), aspectos como suscetibilidade individual que tem a ver com a genética do indivíduo, a capacidade de metabolizar mais rapidamente ou menos rapidamente as substâncias tóxicas e eliminá-las do organismo rapidamente ou não.
É um conjunto de fatores que favorecem o aparecimento de algumas doenças ou não. O risco de doenças do coração e de derrame é praticamente zero quando a pessoa deixa de fumar. Já os danos ocasionados, por exemplo, no tecido pulmonar, em que se eleva a perda de elasticidade, que é um dos caminhos para um enfisema, não se reverte. Mas se você para de fumar, ele não progride.
A pessoa pode chegar na idade adulta já com essas sequelas que são irreversíveis, mas deixando de fumar não vai evoluir para um quadro mais dramático de um enfisema, que é uma situação muito difícil. A pessoa fica praticamente afogada em si mesma porque não tem mais a capacidade de expansão e contração do pulmão, que é o que faz a respiração.
Os riscos de câncer de pulmão caem muito, mas não zeram porque sempre há uma lesão residual naquelas células. Mas as chances de desenvolver o câncer de pulmão caem drasticamente naquele indivíduo que parou de fumar. Quanto mais cedo parar de fumar, menor é o risco.
O tabagismo está relacionado à cultura de cada país?
O tabagismo é uma epidemia construída por um negócio que introduziu o comportamento de fumar nas culturas. Durante muito tempo, a gente via na televisão propagandas maravilhosas associando o comportamento de fumar a um estilo de vida, pessoas de sucesso, corajosas. Quem fumava era chique. Chato era quem se incomodava com a fumaça. Isso ao longo dos anos, na medida que o conhecimento do risco do tabagismo foi se expandindo, foi mudando de tal forma que o fumante que antes era visto como mocinho hoje é praticamente visto como uma pessoa rejeitada na sociedade, que é um outro extremo. A gente precisa entender que o fumante desenvolveu uma doença chamada tabagismo. Ele fuma porque é dependente de nicotina e começou a fumar não porque quis, mas porque foi induzido por toda essa cultura conduzida artificialmente por empresas de cigarro.