É um romance distópico do escritor estadunidense Ray Bradbury (1920-2012), publicado em 1953, onde se desenha um futuro em que os livros são proibidos e as opiniões individuais consideradas antissociais, em ordem a suprimir o pensamento crítico.

A obra, por esse viés, conta a história do personagem central (o bombeiro Guy Montag), apelidado ‘queimador de livro’. Daí o nome do romance, suposto que Fahrenheit 451 é a temperatura da queima do papel.

Há uma versão para cinema, de 1966, dirigida por Truffaut e estrelada por Julie Christie e Oskar Werner. Assisti em 1979, quando tinha 14 anos e pensava que o mundo responderia minhas muitas dúvidas de bem viver – bobagem, viver só angustia mais e mais as fantasias da juventude.

Alguns anos depois li o livro (na biblioteca da UEL) e confesso ser um aficionado de ambos – a beleza de Julie Christie, à propósito, me perseguiu por muito tempo...

Noves fora do que li no passado e dos amores que a vida me deu, leio no presente que os estados do Paraná, Mato Grosso do Sul e Goiás ordenaram o recolhimento do livro ‘O Avesso da Pele’, de Jeferson Tenório, de suas grades educativas.

Recolher um livro em qualquer sistema de ensino equivale a impedir a sua leitura – o que é igual a queimá-lo, suposto que a morte das palavras encerra o capítulo merencório de quem não as leu; seja porque se recolheu a obra, seja porque se lhe ordenou a queima um governo totalitário qualquer.

Não li o livro, confesso. Agora me obrigo à sua leitura. Seja porque a idiotia da medida em si não me parece sustentável em qualquer situação e sob qualquer circunstância, seja na conta do tema (racismo) encerrar nossa maior urgência social. Ademais, a busca por juízo crítico verbera na história da humanidade, ao tempo em que espelha a evolução de nossa espécie – além do que, conhecer começa (e rima) com ler ...

Fico imaginando motivos que, em alguma medida, levam governos a ordenar recolhimento de um livro e, imaginando, sou impelido acreditar que, talvez, por medidas dessa natureza o Paraná, juntamente com Santa Catarina, segundo levantamento da polícia federal do ano retrasado, é um estado onde células neonazistas proliferam em número maior do que em qualquer outro local do país.

Estivesse essa narrativa ao alvedrio de um dos mais festejados bordões mercadológicos veiculados pela Rede Globo de televisão, alguém famoso diria pelo microfone da deusa platinada: - Recolher livros e implementar células neonazistas, tudo a ver!

Em necessário contraponto, lembro que não há notícia de um aumento qualquer (ou até da existência concreta de) das tais células neonazistas no Norte/Nordeste. Por igual, lá também parece que os governos não estão queimando ou ordenando o recolhimento de livros. Seria, então, o hábito de ler deletério cultural do apego ao nazismo? Me parece que sim.

Não obstante a falta de luz característica dos difusores de ideias e pensamento totalitário, cujo aprumo é a opressão das minorias, naquilo que nazistas hitlerianos perseguiram e dizimaram mais de seis milhões de judeus, bem assim muitos negros, ciganos, homossexuais, portadores de necessidades especiais, fica registrada a semelhança dos contextos, bem guardadas suas diferenças, suposto que tanto na Alemanha quanto em Goiás, Mato Grosso do Sul e Paraná, livros foram queimados/recolhidos, tudo em prol de evitar a formação de cidadãos com consciência crítica.

Não que o pensamento crítico seja condição de abjuração do nazismo, naquilo que a sanha da extrema direita leva, necessária e programaticamente, à perseguição de minorias, bastando, assim, apenas e tão somente algumas gotículas de humanidade a nos escorrer pela face.

Esse buraco é mais embaixo, uma vez que o século XXI inaugurou a era do ter, em afronta severa aos consentâneos humanistas fixados enquanto marcos civilizatórios que desaguam em ser.

Assim é que a ideia de se colocar no lugar do outro, reproduzindo cultura e pensamento empático sob o manto diáfano de nosso compromisso de bem viver, bem ou mal nos trouxe até aqui, em que pese hiatos civilizatórios conjurados por (des)governos de extrema direita.

Ter, hoje em dia e sob o sol da Toscana, já é mais do que ser. E isso é o triste resumo de nossa perdição.

Pergunte aos despossuídos de inteligência se a Terra é plana. Se o ignaro integrar o nosso parlamento e, enquanto parlamentar, ter marchado com os zebuínos que se vacinaram contra aftosa (em um domingo qualquer) na Avenida Paulista, ele provavelmente responderá que jamais se preocupou com isso, não tendo pesquisado sobre o tema.

Não lhe pesa a consciência (porque não a tem) a tantada de filósofos e cientistas que morreu queimado (por obra desgraçada de um nada santo tribunal do ofício da Igreja) em defesa da ciência.

Eis o ponto. Não se trata (apenas) de apartar os que conhecem dos que não detém qualquer conhecimento. Aqui o que se destaca é a incapacidade de cientistas, filósofos, literatos, professores, artistas e tantos outros livres pensadores, em abandonar o pensamento crítico, cunhado no conhecimento e forjado na leitura de livros – exceto os de autoajuda e aqueles que escrevem os tais coach’s, seja lá o que for isso.

Tristes trópicos, onde o que se busca não é o conhecimento e sim a ilusão de que importante será, sempre, combater o comunismo. Saudade, Pai.

João dos Santos Gomes Filho, advogado