Conhecemos o desfecho trágico: diante da possibilidade de ser capturado pelos nazistas e enviado a um campo de concentração, Walter Benjamin suicidou-se em 1940, na cidade espanhola de Portbou. Apesar de ter vivido menos de 50 anos, o autor de “Rua de Mão Única” deixou um legado intelectual atualíssimo, que ensina a pensar temas e desafios de todas as épocas.

Em carta de 1935, o historiador da cultura Erich Auerbach informa a Benjamin que a longínqua Universidade de São Paulo (USP) estava em busca de um professor de Literatura Alemã. Por essa razão, havia indicado o nome do amigo para o cargo. Infelizmente, algo deu errado, e Benjamin jamais pôde atravessar o Atlântico para viver e trabalhar no Brasil.

É indesculpável que, num contexto de efetivação da vida acadêmica no país, algum desavisado tenha vetado Walter Benjamin. Na biografia benjaminiana, contudo, são corriqueiros os sofrimentos desnecessários e as paixões derrotadas.

Sempre imaginei Walter Benjamin entre nós, brasileiros. Nesse exercício de salvá-lo da morte e assegurar à humanidade um pouco mais de sua pulsante presença, dedico-me à prazerosa tarefa de imortalizá-lo.

Confesso que, oniricamente, flagrei a chegada do pensador alemão ao Porto de Santos em 1934. Lá, ele foi recebido pelos colegas da USP, intelectuais e cientistas das “missões estrangeiras” que formaram as primeiras turmas da hoje ilustre universidade.

Benjamin teve excelentes impressões do Brasil. Encantou-o um mundo inteiro por ser feito. Julgou estar numa nação livre da barbárie fascista e dos horrores beligerantes. Anos mais tarde, entenderia, entretanto, o peso da escravidão em nosso atávico atraso; compreenderia que as elites daqui são hostis a ideais de generosidade e inimigas de valores éticos, qualitativos.

O autor de “Origem do drama trágico alemão” gostava de São Paulo, mas foi no Rio de Janeiro que se reconheceu como sujeito pela primeira vez na vida. Adorou Copacabana e o mar tropical. Hospedava-se em Laranjeiras só para ficar bem próximo do Fluminense Football Club, clube que aprendeu a amar – no futuro, tornar-se-ia uma espécie de patrono eterno do Tricolor.

Benjamin sofreu para aprender o português. Convenceu-se de incorporar a língua ao seu vasto repertório de mundo quando entrou em contato com a obra fascinante de Machado de Assis e Lima Barreto. À sombra gélida do Estado Novo, Benjamin, que estimulava mentalidades rebeldes, foi acusado de subversão e encaminhado para o presídio de Ilha Grande, onde cumpriu dura pena e conheceu gente brilhante como Graciliano Ramos, Aparício Torelly e Valério Konder.

Embora não fosse filiado ao Partidão (prezava por sua independência), sentia imensa simpatia pelos comunistas brasileiros. De Astrojildo Pereira, por exemplo, tornou-se amigo fraterno. Interessava-lhes um mundo melhor, humano, repleto de sentidos para coexistir.

Bem mais tarde, Walter Benjamin recupera a liberdade e retorna para São Paulo, sem jamais deixar de frequentar o Rio. Chegava ao fim a ditadura de Getúlio Vargas e o Brasil se abria para uma tumultuada experiência democrática.

Na USP, na década de 1930, Benjamin orientou Florestan Fernandes e definiu o rumo das ciências sociais brasileiras. Após a prisão, dedicou-se à construção de uma interpretação nova do Brasil, valendo-se de suas teses sobre o conceito de história redigidas em 1940 e reelaboradas várias vezes sob o impacto da vida latino-americana. (Benjamin viajou pelos países vizinhos do Brasil e incorporou ao seu jeito peculiar de ser muito das culturas dos povos originários dos Andes e da região do Prata.)

Walter Benjamin foi um professor brilhante, um escritor único, um marxista incomparável. Suas aulas eram disputadíssimas, bem como suas orientações formais. Não quis retornar a Alemanha, nem mesmo depois da guerra e da derrota dos nazistas. Preferiu ficar no Brasil, criar raízes, viver tudo imponderadamente.

Logo após o golpe civil-militar de 1964, Benjamin, já um septuagenário, desiludiu-se com o Brasil, conquanto tenha enfrentado com impressionante dignidade o período de trevas que enxovalhou o país. Aposentado, permaneceu em casa, lendo e escrevendo, tentando entender por que as coisas eram tão problemáticas por aqui.

Nos anos 1980, quase centenário, assistiu à redemocratização do Brasil e foi homenageado em prosa e verso por todos que resistiram aos anos de chumbo. Virou nome de rua, teatro, universidade e da sede do parlamento brasileiro.

Morreu em paz, não obstante melancólico, em conflito permanente com aquilo que costumamos chamar de progresso. Foi um anjo da história.

Marco A. Rossi, sociólogo e professor da UEL