As acusações que pesam contra o ex-presidente Jair Bolsonaro e seus asseclas não causam nenhum contentamento, por menor que seja, em quem votou na oposição, mesmo ciente de sua inabilidade em levar adiante qualquer projeto de país. Afinal, disse o capitão: “Eu não vim para construir nada, estou aqui para destruir”. Diante do que foi revelado até o momento, o assalto – deve-se registrar – foi primeiro as instituições da República. E olha que não foram poucas as tentativas de saques.

Bolsonaro chegou ao poder negando a política, em que pese ele e o clã familiar viveram na (e da) política. Na verdade, ele buscou desfazer o consenso em torno do pacto constitucional que permitiu a correlação de forças entre centro-direita e centro-esquerda por mais de duas décadas no país. Há, sim, críticas a esse consórcio mediado pelos partidos de centro que, em boa medida, imobilizou o sistema político. Tais falhas, porém, não autorizam que falanges extremistas possam reivindicar o sepultamento da democracia. Vale, nesse sentido, a leitura da obra “A Carta”, de Naercio Menezes Filho e André Portela Souza (Editora Todavia, 2019), que demonstra, por meio de dados, os significativos avanços que o Brasil conquistou durante a democracia da Nova República.

O problema não é só a fotografia estampada nas páginas policiais, mas, principalmente, o retrato mal pintando de um país assaltado pela dupla siamesa do autoritarismo e do fanatismo. Um combo que Bolsonaro embalou e vendeu ao seu público. A história mostra um futuro arquitetado sob os escombros do passado. Somos reféns de um pretérito não sepulto, de um país pré-moderno que pouco lê e fortuitamente reflete sua autocompreensão republicana e cidadã.

Bolsonaro deu voz a uma multidão que se voltou contra o sistema político – e nesse aspecto com razão. Mas ofertou algo a mais no altar dos intolerantes: uma fé cega permeada de posturas autoritárias, antidemocráticas e fora das amarras legais. Como se sabe, marginal é todo aquele que age à margem da lei e a confronta, atacando a democracia, instância que assegura legitimidade às normas legais. Sem democracia não há poderes legítimos nem legalidade. Só autoritarismo e barbárie.

Negar a democracia é recusar uma sociabilidade mútua, educada e madura. Os laços de sociabilidade, por menor que sejam, exigem reciprocidade. Um pai pode sustentar seu senhorio pela violência ou pelo respeito. Em uma relação de respeito, o pai ganha o filho, que autenticamente o reconhece como pai. Numa relação abusiva, o pai não tem o filho, apenas alguém submetido à sua violência arbitrária. Fúria em estado bruto não gera empatia, não estrutura relações sociais, não transforma ninguém em cidadão e tão pouco constrói uma nação.

A marginalidade confirma o desejo de insultar a lei e de negá-la “Qualquer decisão do senhor Alexandre de Moraes, este presidente não mais cumprirá”; de refundar uma nova ordem “Eu sou a Constituição”; ou de encontrar alternativas milagrosas “Quem me colocou aqui foi Deus. Só Ele me tira daqui”.

No Brasil, infelizmente, a marginalidade confunde-se com o “jeitinho”, que é, para muitos, uma postura virtuosa de ostentar status social, de estar cercado de amigos que quebram o galho, dão uma mãozinha aqui e acolá e ajustam as leis sob a métrica do interesse particular. Sempre há um ajudante de ordens batendo continência, uma boa alma, mão amiga. Regras públicas às favas.

O caso das joias da Coroa estampa um quadro vergonhoso para o país. Pior mesmo seria se o assalto às instituições tivesse alcançado êxito. Já não haveria investigação nem punição. Carimbados com “sigilo de 100 anos” estariam vários documentos comprometedores. Ao menos a turba estaria feliz reverenciando o mito e dormindo o sono dos justos, seguros de que não há corrupção no governo do capitão.

Clodomiro José Bannwart Júnior é professor de Ética e Filosofia Política na Universidade estadual de Londrina

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