Concordo com a análise feita pelo amigo Roberto Mota, no seu artigo publicado com o título de: “Santa paciência” na Gazeta do Povo (04-08-2024). Achei o fim da picada a versão “woke” da Última Ceia, feita justamente para intimidar e escandalizar os turistas assistentes aos Jogos Olímpicos de Paris. Se é para se refestelar com as benesses da civilização, - pensam os programadores da performance gramsciana - comecemos com a encenação “woke” da Última Ceia, a fim de que fique claro, de uma vez por todas, que só se aceita uma versão cultural: aquela que sintonize com a única verdade possível, arrotada pelos “intelectuais orgânicos”, da eucaristia do nada. As outras versões serão simplesmente aniquiladas pela massa dos intelectuais orgânicos.

O espetáculo grandioso dos Jogos Olímpicos é, para esses criadores do caos, unicamente um detalhe. A beleza plástica e o mérito das apresentações dos competidores movidos pelo triplo ideal olímpico (“Citius” [mais rápido], “Altius” [mais alto], “Fortius” [mais forte]) foram reduzidos a nada com a grotesca encenação que realmente é a “porta de entrada” para o universo do nada civilizacional. Bem que poderia ter sido emprestada, ao palco do niilista espetáculo, a belamente tenebrosa “Porta do Inferno” do genial Rodin (exposta no Museu d’Orsay), com aquela frase de Dante Alighieri: “Deixai aqui toda esperança”.

Uma das características deste tresloucado mundo consiste em que as minorias que negam os valores fundamentais da civilização cristã ocidental tenham os holofotes à disposição, a fim de transmitirem em vivo e em direto as suas mensagens de menosprezo pelas crenças dos outros. Particularmente sensível é o fato de a dita encenação ter-se passado num país que ancora culturalmente na tradição cristã, como a França.

Bom: reconheçamos que, no mencionado país, o desajuste não é de agora. Já o grande Tocqueville (1805-1859) destacava, na sua obra O Antigo Regime e a Revolução, que quem pretendeu exorcizar Deus da vida dos franceses foram primeiro os filósofos iluministas, que O tiraram da alma do povo, infelicitando os corações da gente simples e dos intelectuais cristãos, e jogando-os na fogueira da Revolução.

A partir daí os franceses perderam a alegria de viver, escutando o canto de sereia dos “philosophes”, o principal dos quais foi o desajustado Jean-Jacques Rousseau (1812-1878), que considerava ser fácil organizar um país, quando deu a receita para essa tarefa no seu livrinho intitulado: Do Contrato Social (1762).

A síntese da receita teórico-revolucionária para organizar um país, segundo Rousseau, era a seguinte, levando em consideração dois princípios prévios enunciados com claridade meridiana no 8º capítulo do mencionado livreco: 1 – A felicidade de uma Nação decorre da unanimidade de todos ao redor do Legislador, uma espécie de rei-filósofo à maneira platônica. 2 - A infelicidade se instala num país, quando surge o dissenso entre os cidadãos, algo assim como o desajuste denunciado pelo “Inquérito do Fim do Mundo”. 3 – O remédio para o mal consiste na eliminação física dos dissidentes, a fim de que se torne possível a felicidade geral.

Ao contrário do que dizia o nosso Nelson Rodrigues (1912-1980) de que “toda unanimidade é burra”, para Rousseau a condição que garante a felicidade e a harmonia de todos, na sociedade, consiste na implantação da unanimidade dos cidadãos ao redor do Legislador. Convenhamos que, na quadra atual do nosso autoritarismo centrípeto, herdeiro do espírito pombalino e da “ditadura científica” positivista, Rousseau reconheceria as condições ideais para a nossa plena felicidade.

Portanto, se a condição radical para a felicidade de todos é a unanimidade, qualquer meio torna-se válido para garantir a felicidade universal. Ora, essa condição não é fruto de uma pregação, mas de uma providência muito mais simples: a eliminação física dos dissidentes, utilizando o terrorismo de Estado, mediante o funcionamento impiedoso de uma polícia política.

Digamos que o filósofo de Genebra, Jean-Jacques Rousseau, abriu as portas do inferno com o seu livrinho, que foi distribuído generosamente entre os arautos da “revolução regeneradora”, dando ensejo às grandes tsunamis dos tempos modernos, a começar pela Revolução Francesa de 1789, com a sua famosa maquininha de cortar cabeças de dissidentes, a guilhotina, tão eficiente que ceifou a cabeça dos próprios revolucionários, a começar por Robespierre (1758-1794).

As revoluções que a Humanidade conheceu de lá para cá tornaram-se espetáculos sanguinolentos. Nunca se matou tanto nem tão eficientemente como nos séculos XIX e XX, com a aplicação automática, por hordas de fanáticos ensandecidos, dos princípios da unanimidade total e da aniquilação da dissidência.

Ricardo Vélez Rodríguez, professor de filosofia e ex-ministro da Educação

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