ESPAÇO ABERTO: Rita Lee e minhas memórias perdidas
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quinta-feira, 11 de maio de 2023
João dos Santos Gomes Filho
Leio, em todo lugar, sobre o encantamento de Rita Lee Jones de Carvalho, a ‘primeira Drama’ do Rock latino. Foi cedo (se é que alguém vai antes ou depois), é fato, mas deixa estupendo legado sócio/libertário/musical, a ser mais e melhor apreciado. De quebra, partiu meu coração ao meio e não sei se haverá ‘meio’ de recompor o quadro.
Desde ‘ninho’ amei Rita e sua ‘joie de vivre’, que apresentou ao mundo a ovelha negra da família latina e ‘esse tal de rock and roll’.
Minha primeira lembrança de Rita Lee é dos anos setenta e eu contava 10 anos (1975). O Brasil vinha do fracasso na Copa do Mundo da Alemanha e o meu Timão do sofrido abalo da final perdida em 1974.
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Lembro de ouvir (pelo rádio) a celebração em torno do álbum Fruto Proibido, que Rita então lançara com a banda Tutti Frutti. Fruto Proibido é, até hoje, reverenciado enquanto marco do Rock brasileiro – além de ser considerado, por muitos críticos, sua obra prima...
Não sei se é. Sei que gosto de tudo que Rita cantou. Gosto mais ainda da desobediência civil que ela me mostrou, assanhando o guerrilheiro que não fui, nas entranhas do desvio pequeno burguês que vivi.
‘Papai me empresta o carro’. De mantra social à epístola de uma época, as canções de Rita iam do coração que disparava por pequenas emoções colhidas ao acaso de um cotidiano que, antes de não me pertencer, não pertencia senão a quem ofertasse prosa musicada em forma de alegria.
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Rita está para a contracultura como minha calça Lee esteve para o chefe dos Parintintins e seu ensaio pop sobreleva a patamar maior aquilo que Caetano chamou de ‘sua mais completa tradução’, referindo-se à cidade de São Paulo em seu clássico Sampa...
Deveras, a cultura pop que reconhece Andy Warhol não será a mesma com o encantamento de Rita e já alerto, por amor à vida: não será fazendo uma estátua para Rita, encimada de uma coroa de louros e devidamente trajada com o sagrado manto corintiano (sim, Rita é nóis!), no coração de sua amada Vila Mariana, que daremos lume e dimensão a extraordinária estrela que ela seguirá sendo.
Rita, muito antes de Madonna e bem antes da menarca de Lady Gaga, mostrou aos jovens (quer de idade, quer de espírito) o que seria amar e não ter medo de ser feliz, em tempo de não descuidar dos próprios equívocos.
Entrementes e para não perder a fleugma, Rita enfrentou generais de mentira em uma peleia ditatorial que matou muitos brasileiros, ao tempo em que torturava mulheres sobreviventes. Tudo isso com a paleta de sua Fender na mão...
Então e assim, sete anos após eu ter me encontrado em Fruto Proibido, estive em um show dela, no ginásio do Tarumã, em Curitiba, onde estávamos alojados por ocasião da disputa dos jogos universitários do Paraná. Quando soube que haviam universitários alojados onde daria seu show, Rita gentilmente convidou-nos todos a participar de sua festa. Atendi a sua invitação e bailei ao som de seu Rock contestador e libertário...
A magia saia de sua boca e ganhava o mundo, encenando um estado de espírito genuíno, que lembrava a cada um de nós que viver seria sempre mais prazeroso se sorríssemos ‘ao som de um bolero’.
Li em artigo do Casagrande em uma mídia qualquer, que Rita Lee lhe mostrou quem o grande jogador era, e que ele gostou de se descobrir.
Não tenho pretensão de indicar Rita enquanto descobridora dos sete mares de minha vida – até porque os Beatles não concordariam com minha fala, no que os jovens de Liverpool estariam certos. Mas não posso desconhecer a extraordinária valia que, para minha irreverencia divina, fez e seguirá fazendo o descompasso social de Rita Lee, encenando sua participação pelos palcos da vida.
Engajada, liberal, feminista, altruísta, corintianíssima, Rita adjetiva os próprios adjetivos, ensaiando nos seus abraços o maior de nossos pecados: a solidão.
Lembro estar ouvindo Ovelha Negra e, na parte em que seu pai lhe etiqueta (‘filha, você é a ovelha negra da família’), colando na própria cria o peso secular de um convívio patriarcal, onde as balizas sempre estiveram estabelecidas e o papel legado à mulher não ia além de cumprir as narrativas que a sociedade patriarcal cunhou, chorei porque posso ter me visto, ainda que meu pai jamais tenha me etiquetado – quem o fez foi a vida...
Há, de minha parte, um grande estranhamento em relação ao que e ao quanto devo a Rita, suposto que mesurar não me é possível, naquilo que a vida, se imita a arte como diz o poeta, antes a subverte, como tenho dito alhures e, principalmente, conforme Rita ensinou.
Fato é: Rita sempre me pareceu a subversão em forma de versos e esse viés não impediu a rainha do rock nacional ser a quarta maior vendedora de discos da MPB, com a fabulosa marca de 55 milhões de discos vendidos.
Não é pouco, principalmente em se tratando de um país machista de flerte misógino, onde os Mutantes apregoavam aos quatro ventos que, no Brasil, para fazer rock necessitavam-se culhões. Rita apressou-se desdizê-los, estabelecendo o entendimento de que também seriam imprescindíveis ovários e úteros.
E foi com esse engajamento que Rita Lee sempre se posicionou em favor da questão feminina, tornando-se para além da feminista precoce, extraordinária ativista da causa social.
A ironia ácida que permeia sua produção musical soube conviver com sua pauta reivindicatória da independência feminina, numa época e em um país que olhavam e tratavam a mulher como alguém inferior ao homem e que, por isso mesmo, até essa semana, ganhava menos pelo mesmo serviço prestado.
Triste dizer adeus para alguém que mais do que acalentar nossa rebeldia, empresou dignidade e fantasia à contracultura, sendo uma de suas guardiãs. Noves fora, inda mais tristes estão os trópicos, com a retirada de palco da rainha que esse pequeno escriba reconhece. Saudade Pai...
João dos Santos Gomes Filho, advogado
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