Não se fala de outra coisa. Fui ver. O filme Barbie (de Greta Gerwig) conquistou imediata reverência do público. Jovens e adultos vestidos de rosa por todos os cantos, produtos personalizados em vitrines e até a gastronomia rosa. A outros, o rosa incomoda.

Barbie, fenômeno de nossos tempos, contrasta paradigmas disfuncionais à celebração da independência feminina. Reafirma que a mulher pode ser o que ela quiser, tal como preconizava a boneca no final dos anos 50. Trazer a independência feminina ao meio lúdico, como mostra o filme, foi a proeza da boneca entre as meninas, incitando valores e comportamentos — brincar de ser independente dispõe à independência real.

O fator “sucesso” do filme é, sem dúvida, a lúcida sátira à própria indústria cinematográfica. Verdadeiro Dom Quixote da sétima arte, diverte-nos ironizando o cotidiano dos casais, aliado, é claro, à séria questão da mulher contemporânea. Tudo isso à maneira geek — quanto mais cultura pop, referências e easter eggs, maior o deleite neural.

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Contudo, o formato chama a atenção.

Gerwig, além de deter um o quê pertinente, caprichou no como.

O sucesso de Barbie se revela num formato audiovisual cada vez mais comum, a quebra da “quarta parede”. Denis Diderot, filósofo francês, já analisava o tema em Paradoxo do Ator (em tradução livre), de 1758. No recurso, os personagens reconhecem a presença da platéia e a ela dirigem-se, interrompendo a submersão fictícia. A quebra da quarta parede é comum no teatro. Mas séries como The Office, MR. Robot e Fleabag, para citar algumas, investiram no formato e obtiveram sucesso.

O filme usa o recurso com tanta maestria que mal o percebemos. Nele, é condição estrutural. A interação é pressuposta, a interrupção da submersão, a constante. Visa o riso, mas o riso coletivo; ensina-nos sobre valores, mas que ecoem no cotidiano como respeito e igualdade, lição que aprendemos entretidos, por assim dizer.

Observação: os personagens parecem saber serem vistos — e isso interfere na ação, numa espécie de teatro streaming.

No filme, é a realidade que invade o imaginário. O cinema, pelo que sabemos, consiste no caminho inverso, o imaginário como fuga da realidade. No roteiro, a ação dos personagens parece ocorrer mediante o olhar da platéia, rastro, me parece, dos influencers digitais na comunicação. No Youtube é assim, quem grava presume reações, e as reações alimentam o andamento da gravação. Em outras palavras, a ação se antecipa à reação. É o que vemos em Barbie. A dinâmica das redes sociais já está no cinema; portanto, “quebra de paredes” no mundo digital.

O diferencial se deve ao nosso nível de racionalização, desencantado com fórmulas.

A jornada da própria boneca envolve a quebra supervisionada de paredes. Barbie sabe ser o que é e contata o mundo humano, “parede” da Barbielândia. Contudo, descobre-se cansada da realidade de boneca. Semelhante à mulher contemporânea, ela não quer mais ser brinquedo — quer, sim, brincar de mulher.

E brincar dignamente.

Por fim, fui ver e fiquei saturado de impressões. Uma coisa é certa: o recurso da quarta parede nos dá uma espécie de “recreação formativa”. Ficção, Barbie nos fazer olhar para a nossa própria Barbielândia, a sociedade, de modo crítico, dramático e até filosófico, combinação digna de Simone de Beauvoir. Em busca de sua identidade de boneca, ela nos faz pensar sobre o que nos faz humanos, e não apenas o que faz da mulher, mulher.

Entre conflitos de paradigmas, ser humano envolve, sem dúvida, aceitar que, apesar dos playgrounds caóticos da sociedade, viver é maravilhoso — a maior de todas as brincadeiras. Recreando com assuntos sérios aprendemos isso. Barbie fica maravilhada com a vida humana, e o que queremos no final das contas, como ela, é levar a vida como brincadeira, sem paredes.

Douglas Giovani Ezequiel é revisor e redator freelance, graduado em Filosofia pela Universidade Estadual de Londrina.