Já é sabido que o PL 1904 visa a equiparar ao crime de homicídio todo aborto realizado após as 22 semanas, incluindo os casos de estupro. A mulher ou menina pegaria até 20 anos de prisão, enquanto o estuprador, de 3 a 10 anos.

Foi com muita satisfação e otimismo que vi a opinião de dois líderes religiosos que se posicionaram contra o projeto, mostrando-se solidários às mulheres e meninas. Foram eles: o Padre Manuel Joaquim R. dos Santos, londrinense, num texto da Folha (29 e 30 deste mês) e o Bispo de 91 anos, dom Angélico Sândalo Berardino, de Blumenau (SC), na mídia impressa e na internet.

Começo destacando a fala do Bispo, que reconhece a falta que a educação sexual fez em sua vida, desde a infância até a velhice, e defende a urgência da mesma, afirmando: “A Educação Sexual deveria ser prioridade na escola, na pastoral, na catequese, na família”. Por diversas vezes, valoriza, sobremaneira, a educação sexual e completa: “A gente tem que evoluir, e não ficar somente apegado à punição das pessoas”.

De forma coerente com as ideias do bispo, Padre Manuel Joaquim diz que “Uma sociedade inteligente não opta pela criminalização, mas pelo cuidado”, e José Mujica, ex-presidente do Uruguai, em 2012, quando o aborto foi descriminalizado em seu país, afirmou: “É mais inteligente não proibir”. Padre Manoel afirma que o Pl 1904 “é uma armadilha” para que autoridades religiosas, como padres e pastores, fiquem calados. Propõe em outro momento: “Por que não discutir injustiça social, trabalho infantil e escravo ou desrespeito aos idosos tratados como descartes?”

Tanto padre Manoel Joaquim quanto dom Angélico criticam a insensatez de se lidar com um tema tão caro à vida em época de eleição, e o primeiro afirma, ainda: “As Igrejas não têm que correr atrás de deputados para endossar pseudodefesas da vida humana”. Concordo quando ambos dizem que pessoas sensatas não são a favor do aborto, porém, minha luta vai mais longe, porque defendo a total descriminalização para que nenhuma mulher seja presa ou sofra processos porque abortou. Sobretudo, preocupo-me com os milhões de crianças que nascem sem dignidade. São crianças violentadas dia após dia, seja física, psicológica ou sexualmente. Disse Jesus: “Eu vim para que todos tenham vida e vida com dignidade”.

Fiquei por demais admirada ao constatar, no início do meu mestrado, em 1991, que não há apenas a Igreja tradicional/conservadora, mas também uma linha progressista, segundo a qual, os líderes religiosos atuam não pautados em normas oficiais religiosas e nem em mensagens bíblicas, mas segundo os valores cristãos como, por exemplo, o amor, a justiça, a fraternidade e a igualdade, levando em consideração o momento histórico em que vivemos.

Em seu livro: “Sexualidade e fé: síntese de Teologia moral”, o teólogo Guy Durand aponta essas vertentes e acrescenta a perspectiva questionadora, referindo-se aos líderes que estão a meio caminho, ou seja, questionam vários pensamentos da linha tradicional, agem de forma questionadora, mas não chegam, necessariamente, a ser progressistas. Precisamos considerar que o aborto é uma questão de saúde pública que, se descriminalizado, sai do campo jurídico e passa a ser administrado pelo campo da saúde, pois quem mais morre ou fica com sequelas físicas e psicológicas são as mulheres pobres e negras, uma vez que as que têm condições financeiras vão em ambiente relativamente seguro e não correm riscos. O Estado tem a obrigação de zelar pela saúde das mulheres, mas, quando criminaliza o aborto, as empurra para a clandestinidade, o que conduz a toda má sorte.

Alguns diriam que a mulher que aborta passa a conviver com sentimento de culpa; é de se esperar, pois se alguém faz algo que, em seu país, é considerado crime e/ou pecado, o faz às escondidas e pode sentir culpa. Contudo, o sentimento de alívio predomina para grande parte das mulheres. Pergunto: Você já ouviu mulheres que abortaram, para saber do sofrimento delas pela decisão? Você conhece os motivos que podem levar mulheres a abortarem? Para encerrar: “Que sabem do sol os morcegos e as corujas? São filhos da noite!” Helena Kolody.

Mary Neide Damico Figueiró, psicóloga, doutora em educação e professora aposentada da UEL. Autora de quatro livros sobre Educação Sexual.