Morreu Pelé e o mundo todo chora, poetizando sentimentos e libertando emoções. Não posso, sentimental e emotivo que sou, quedar indiferente – Pelé foi amado por tanta gente e esse amor me alcança, mormente pós martírio que foram os seis últimos anos.

Sou Corintiano e dos mais apaixonados (como se houvesse outro ‘modelo’ de torcedor do Timão). Essa paixão nunca se diminuiu ou desgastou a cada vez que eu reconheci e venerei o Rei – ainda que não seja eu dado a reconhecer monarquias e passar pano para imperialistas; sucede que Pelé, à par a majestade, conjugava uma certa divindade. É justamente essa sua característica que me faz seu súdito.

Pelé é, provavelmente, o brasileiro mais conhecido no mundo. Assim como o Brasil reinventou o outrora esporte bretão, Pelé redimiu os que acreditavam em sistemas (WM) e estratégias para o jogo, ao provar que o caminho mais curto entre dois pontos não seria, necessariamente, uma reta.

Foi Ele a levar a magia para as quatro linhas – não que, antes Dele, a magia fosse estranha ao jogo de bola; apenas não era tão intensa e inebriante. Pelé, nesse contexto, foi o mago dos magos – uma espécie de Merlin dos gramados...

Imagem ilustrativa da imagem ESPAÇO ABERTO: Pelé e meu último tango
| Foto: DOUGLAS MAGNO/AFP

Demais disso, foi Pelé quem colou a marca mais profunda da arte no jogo de bola, teologizando o tratamento e as circunstâncias que a Deusa branca (ou gorduchinha) reclamava das chuteiras mortais – aliás quem imortalizou a ‘chanca’ foi o Rei. Nesse sentido, Pelé foi uma espécie de Michelangelo, enquanto o campo seguia sendo sua Capela Sistina.

Há gênios que a humanidade reconhece e reverencia: Michelangelo, Leonardo, Newton, Shakespeare, Dante, Cervantes, Machado, Guimarães, Einstein, Chaplin, Camões, Beethoven... E há Pelé. Tão genial quanto, e um degrau acima – o degrau da arquibancada, onde se acomoda o jogo da vida e onde nasceu a paixão arraigada ao instante imortalizado no caminho do gol.

Se você, incauto leitor, jamais fez um gol, relaxe e aproveite seu crédito: Pelé fez mais de mil para você, para mim, para a Angelina Jolie, para o Tarcísio Meira, para a Hebe Camargo, para o seu Manoel da Padaria (e para o próprio Padre Manoel, de quem tomo à benção por aqui) e para todo aquele que amou, nos desencontros da vida, o destino de uma disputa em gramado retangular.

Pelé foi plural sendo individual e isso me encanta a ponto de obnubilar, no encantamento, qualquer visão pragmática de sua história. Em que pese Pelé tenha jogado ao lado de lendas (Garrincha, Rivellino, Cláudio, Luizinho, Baltazar, Carbone, Mário) de minha formação, ainda assim Ele assumiu a narrativa de sua intervenção, compondo o quadro mais marcante de nossa história.

Foi o mais provável dos heróis em um jogo marcado por heróis improváveis, suposto que o fascínio de sua arte subjugava as hipóteses, ao tempo em que represava instantes eternizados na memória de quem o viu desfilar a elegância de um Rei Zulu pelos gramados mundo afora.

A negritude de Pelé foi sua maior herança, naquilo que mostrou ao mundo branco europeu o caminho hiperbólico de um gênio negro. Pelé reafirmou, a cada gol, a cada drible, a cada jogada mágica, a saga negra de Jesse Owens (meu grande herói) e do Pastor Luther King, ao tempo em que inspirava os Panteras Negras e, porque não, o próprio Cassius Marcellus Clay Júnior – Mohamed Ali.

Não que Pelé soprasse magia a seus parceiros de cor, que lutavam em outros campos por direitos dos negros. Pelé apenas jogou e fez magia suficiente para adormecer os estereótipos raciais que acordaram sob os falsos messias, na medida em que não havia quem não reverenciasse sua genialidade negra.

Pelé, enquanto extensão da própria bola, foi a metáfora mais grandiloquente que o século vinte desenhou, justamente porque não houve no mundo quem não desejasse ser Pelé.

Pelé era (é) maior que todas as cores, ainda que seja maravilhosamente negro, suposto que ao compor suas obras de arte, Ele as concebia em preto e branco sim, mas as coloria com o pó da vida que pavimenta os caminhos da magia pela beleza que leva ao encantamento.

Pelé jamais morrerá. Pelé é eterno por cada um dos mais de mil gols que fez, pela beleza embrulhada em magia que produziu e, principalmente, por ter existido tão intensamente, em um contexto branco, enquanto negro.

Penso que sem Pelé, dificilmente teríamos Maradona – sua mais completa tradução, na medida em que o gênio irrequieto do argentino que amou a vida e a liberdade, não contrastava com a arte profunda e genial que produzia, ao tempo em que o gênio focado de Pelé limitava a magia aos contextos que a bola resumia.

Dir-se-ia: enquanto Maradona foi subjugado por sua história de vida, Pelé foi prisioneiro da própria magia.

Não poderia, todavia, falar de Pelé sem lembrar Maradona. Aliás, meu último tango (Piazzolla baby, Piazzolla!) não foi Diego e sim Pelé. Consoante já lhe disse, Ariel, para mim não há forma (poética ou racional) de escolher entre Adiós Nonino (Pelé) e El dia em que me quieras (Diego).

Posso ter amado mais Maradona (gauche, rebelde, irreverente, genial), o que não quer dizer que amei menos Pelé (artista, genial, negro) – afinal, como ensinou meu pai, amar é um estado de espírito a nos assombrar pelas esquinas da vida. Feito Diego, feito Pelé!

Tristes e desfalcados trópicos, onde no jogo da vida a metáfora vai cedendo lugar ao concreto da solidão. Adeus Pelé, obrigado pelos sonhos que me fez sonhar!

João dos Santos Gomes Filho, advogado

Os artigos, cartas e comentários publicados não refletem, necessariamente, a opinião da Folha de Londrina, que os reproduz em exercício da sua atividade jornalística e diante da liberdade de expressão e comunicação que lhes são inerentes.

COMO PARTICIPAR| Os artigos devem conter dados do autor e ter no máximo 3.800 caracteres e no mínimo 1.500 caracteres. As cartas devem ter no máximo 700 caracteres e vir acompanhadas de nome completo, RG, endereço, cidade, telefone e profissão ou ocupação.| As opiniões poderão ser resumidas pelo jornal. | ENVIE PARA [email protected]