O litoral norte de São Paulo, onde a chuva do carnaval passado desnudou a ganância utilitarista de nossa elite econômica, ao tempo em que expôs interesses imobiliários, corrupção, racismo, exploração de trabalho (dentre outras mazelas), deixou desenhado que o neoliberalismo segue sendo o verdugo secular dos pobres de latino américa.

Tenho uma relação de várias décadas com a mata atlântica (um dos amores de minha vida), onde meus filhos cresceram ao som do mar e à luz do céu azul, nadando no Atlântico da areia branca que lhes tocava os pés, interagindo com a cultura caiçara da região. Posso dizer que Ubatuba é a escolha para o fim de meus dias – se a Patagônia não me quiser!

Então, haja dor para escorar o morro precipitando sobre as casas humildes das encostas que sobraram da especulação imobiliária da região, fruto da habitação desordenada que caracteriza a geografia do Brasil, desde o tempo em que madame não podia ficar sem sua empregada, mas Copacabana era cara e longe dos bairros periféricos de Rio de Janeiro...

A voz do morro se faz ouvir e grita não poder mais suportar tamanho descaso com as gentes originárias e com o pobre latino.

Não há Deus na exploração do trabalho doméstico tupiniquim à custa dos cinco f*da-se que a vida pequeno burguesa propicia em um de seus históricos desvios: moradia, saneamento, educação, saúde e dignidade.

Não pretendo falar, aqui, de quatro dos cinco valores que o neoliberalismo avilta desde sempre. Mas vou tentar manter um ligeiro diálogo com vocês pelo viés da dignidade.

Começo do início, suposto que a ideia de dignidade não surgiu no século XX e, nem sempre, esteve na berlinda pelo viés humanista fundamental. Na Roma antiga, por exemplo, era a dignidade um atributo associado à qualidade de quem possuía ocupação e posição pública.

Foi, na modernidade, todavia, que a dignidade se espraiou enquanto valor mundano associado a toda e qualquer pessoa. Assim é que o escravo, muito embora possuísse dignidade (afinal o negro é gente!), foi vitimado pela exploração branca europeia, que lhe subtraía a condição digna, em prol dos interesses econômicos dos senhores feudais e de engenho.

Fruto dessa visão, as colônias sul-americanas cresceram à sombra do (des)valor do negro e, como a vida não é mágico realizativa, não foi uma lei que deu, ao negro, a dignidade que o branco negava, negou e segue negando.

A coisificação das pessoas, cujo exponente máximo é a mulher e o negro, fez daquela um objeto (sexual e qualificativo de status) e deste um animal de lida que atende demandas do capital. Assim é que, quando a mulher se sujeita aos anseios esteriotipais do macho branco europeizado, ela ascende economicamente. Já o negro...

Feita essa ligeira e muito rasa digressão de nossa ciranda social, a pergunta que não cala: qual a cor da tragédia? A tragédia, quase sempre é negra.

Deveras, o ser humano convola o potencial dar fim a si mesmo em lugar de se submeter às próprias inclinações (raso feito um lajeado essa minha menção kantiana), o que reclama para o homem a compreensão racional de que viver é um fim em si mesmo e não um meio realizador de projetos e desejos.

Porque, então, a exploração do homem pelo homem se mantem século após século? A miséria tem justificado esse modelo extrativista do suor alheio à custa do mínimo e, quase sempre, na ausência de razão.

A ocupação irracional dos morros no litoral norte de São Paulo seguiu a trilha da necessidade de madame de Copacabana, com um plus de irracionalidade que, ano após ano, cobra da mão de obra mais barata (a negra) o custo pela opção que potencializa desejos e projetos neoliberais em lugar da dignidade daquele que, ao bater a areia e assentar o tijolo, realiza o sonho alheio.

Não dá para seguir fingindo que a só paga financeira normaliza a mantença da mão de obra à distância da realização dos desejos pequeno burgueses, eis que estes, enquanto desviantes da racionalidade das relações, implementa a lógica do interesse volitivo qualificativo em lugar do valor fundante da dignidade humana.

Construir sem olhar e respeitar a natureza já cobra um custo e esse custo o neoliberalismo tratou de pintar de negro, que é a cor da mão de obra barata que o morro abriga, desde que não chova muito.

Não há justificativa moral para essa covardia degenerativa da dignidade que se nega ao pobre no Brasil. A questão que se impõe é, pois, saber quando será a próxima grita de mãe natureza.

Saudade pai, você ensinou que dignidade é o mínimo que se deve reservar ao próximo e não uma qualidade de quem detém o meio de produção.

Tristes e indignos trópicos!

João dos Santos Gomes Filho, advogado