Leio, em cada mídia digital que visito, que o Supremo enterrou a ‘tese de Copacabana’, rechaçando a hipótese do Brasil ter sido ‘descoberto’ em 1988. Vou tentar explicar, iniciando por uma afirmação: não se pacifica um país passando pano para invasão de terras – tampouco negando direito fundamental ao povo originário.

Noves fora, em 2009, no julgamento da demarcação das terras originárias de um povoado de Roraima (a reserva Raposa Serra do Sol), o pleno do Supremo decidiu pelo reconhecimento e fixação de um marco temporal (remetendo a inteligência em artigo da Constituição de 1988 que garantia o usufruto das terras ‘tradicionalmente ocupadas pelos indígenas brasileiros’.), para e na demarcação daquela terra.

Este entendimento fixou, naquele processo, a data de promulgação da carta política (05/10/2023) enquanto marco temporal do direito daqueles originários à demarcação de sua reserva.

Era um caso pontual. O mundo jurídico sabia, o acórdão em sede de embargos assim o disse, a natureza sabia. Mas o invasor (grileiro, posseiro, latifundiário neoliberal) de terras originárias não quis reconhecer, notadamente após o golpe de 2016, com a tal "ponte para o futuro", atingindo o seu limiar com o desgoverno que passou.

Daí o acerto e a grandiosa importância da decisão do Supremo que, por seu Pleno, garantiu o direito dos originários conforme a Constituição apregoa (terras tradicionalmente habitadas).

Venceu a decência, a história, a Constituição. Venceu a vida.

Deveras e à par disso, registro que não acompanha a observação deste inoportuno vivente dos dias, uma qualquer malquerença com o desafio de teses jurídicas (e a de Copacabana, efetivamente, é uma delas), naquilo que a ciência jurídica demanda, enquanto fonte do direito, a jurisprudência...

Noves fora, o que pontua meu asco é a facilidade com que alguns juristas manobram com o direito em direção ao acomodamento de situações que não seriam de se acomodar.

No julgamento demarcatório a que me refiro, ouvi um ministro reconhecer o direito dos originários ao tempo em que recepcionou a tese de Copacabana, suposto que ladeou ao reconhecimento dos primevos a ação de seus invasores (grileiros e outros maledicentes mais), sustentando uma posse ilícita. Fê-lo, segundo o próprio, para pacificar a situação atual.

Ministro, não se pacifica nada negando direitos e reconhecendo ilicitude a malferir estes direitos.

Uma Corte Suprema não pode ser refém de qualquer necessidade e a paz, ainda que desejável em qualquer contexto, quando aflora sobre a violação de direitos alheios, não é paz e sim medo.

É mentirosa, pois, a dicção de um direito subjacente a opressão da história de um povo que, desde o século XIV, vem sendo pilhado, assassinado, escravizado, violado, invadido, oprimido, rotulado, incendiado e tantas outras maledicências mais.

O povo originário é o vero possuidor das terras por aqui desde sempre, pelo só fato de aqui já estarem quando o europeu colonizador aportou com suas caravelas ‘pelas praias coloridas pelo sol’.

Me ponho a imaginar um sistema jurídico que conviva com um dualismo dessa categoria: ao tempo em que reconhece o direito postulado, nega este direito em nome de uma situação que não quer enfrentar.

Chega disso. Fizemos isso com a lei da anistia que, por ser ampla, geral e irrestrita, permitiu interpretação escatológica que alcançou, tanto quanto, o militar assassino que torturou e matou o adversário ideológico político.

Essa temeridade colocou no mesmo plano vítima (de morte e/ou tortura) e o covarde de farda – que envergonhou, enlameou e desonrou o uniforme – desnaturando o plexo de proteção que o estado democrático de direito deveria espraiar, aí sim, na pacificação da vida em sociedade.

Não se trata aqui de ser de esquerda ou não, mas sim de reconhecer os crimes da ditadura e aplicar as penas que o ordenamento pátrio estabeleceu para punir quem invadisse tais esferas de proteção.

As inúmeras histórias de vidas interrompidas (por morte e/ou tortura), conhecidas de quem sabe ler e que estão contadas, recontadas, provadas às escâncaras, não poderiam ter sido subjugadas da maneira como foram por aqui, onde não acertamos conta com o passado golpista de 64, ao custo da negação de uma montanha de direitos.

Essa leniência judicante será a mancha que levaremos conosco. Serei para sempre da geração que velou Vannucchi e Herzog, mas não pode urinar na cova de seus assassinos covardes.

A ampla maioria espelhada na decisão do Supremo (nove votos contra dois) restabelece a história como fato jurídico inconteste e é muito bem-vinda até por isso, conquanto recepciona um direito enorme, no seio de seu estado democrático, naquilo que não passando pano para criminoso, aparelha decisões futuras e já põe um rumo nos julgamentos dos golpistas de 8 de janeiro.

A memória de Vannucchi e de Herzog, dentre tantos outros como Pomar, está honrada na decisão do Supremo, onde está implícito e explícito que a história não é de ser desconhecida e, tampouco, reescrita. Afinal, fascistas não passarão!

Tristes e esperançosos trópicos. Saudade Pai, você ensinou que a honra também é o respeito à memória histórica de um povo!

João dos Santos Gomes Filho, advogado

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