Em qual cenário político-constitucional foi elaborado o atual Código Penal (CP)? No ápice do Estado Novo e em plena 2ª Guerra Mundial. Vigorava a Constituição de 10 de novembro de 1937, e que em seu preâmbulo declarou que visava a atender "a paz política e social", isto é, a paz pública. Reprimiu a greve e o lock-out, declarando-os recursos antissociais nocivos ao trabalho e ao capital e incompatíveis com os superiores interesses da produção nacional (art. 139). Três semanas após, foram dissolvidos todos os partidos políticos do Brasil (decreto-lei 37 de 2/12/1937).

Nesse ambiente, em 1940, foi publicado o Código Penal, em vigor (houve atualizações mas os tipos aqui mencionados são daquela época). Dividido em duas partes, a geral e a especial, nesta contém 12 títulos, sendo que no título 1, capítulo 5, tratou dos crimes contra a honra (calúnia, injúria e difamação), e no título 9 (IX), intitulado dos crimes contra a paz pública (tal como o preâmbulo constitucional de 37), tipificou-se a incitação ao crime (artigo 286) e a apologia de crime ou ao criminoso (art. 287).

Meio século depois foi promulgada a atual Constituição (CF/88), que garantiu ser livre a manifestação do pensamento, observado apenas um requisito: ser vedado o anonimato (art. 5º, inciso 4), e especificamente quanto à honra assegurou direito de resposta proporcional ao agravo e direito à indenização por dano material, moral ou à imagem (incisos 5 e 10), ou seja, houve uma descriminalização; porque se a nova ordem constitucional quisesse manter a esfera penal da expressão do pensamento, nos pontos acima mencionados, teria feito como fez no art. 37, parágrafo 4º, ao dispor que os atos de improbidade administrativa importarão na suspensão dos direitos políticos, sem prejuízo da ação penal cabível. Esta ressalva penal não foi prevista quanto à impetuosidade, insolência verbal.

Vale dizer que, não é pelo fato de haver um tipo penal no CP, anterior à atual Constituição, e elaborado sob a égide do Estado Novo, que necessariamente tenha sido recepcionado. Notadamente por serem espécies de crime de opinião, inexistente na atual ordem constitucional. Até porque, se a cogitação e os atos preparatórios, que antecedem a execução, em regra, não são puníveis, como poderiam sê-lo a incitação e apologia ao que quer que seja? O próprio Código já tencionava nesse sentido, no art. 31 (a instigação não é punível, salvo disposição em contrário, se o crime não chega a ser tentado).

Penso que a partir de 1988, os crimes contra a honra e de incitação ao que quer que seja ou apologia ao crime ou ao criminoso não foram recepcionados, devendo ser interpretados sopesando o ambiente constitucional de 1937 e seus valores e a mudança havida com a atual Constituição.

Aliás, parece passar despercebido que a própria Exposição de Motivos da Parte Especial do Código Penal, redigida pelo autor da CF/37 e do próprio CP, o advogado mineiro Francisco Campos, já trazia a ressalva, no item 81, de que a incitação ao crime e sua apologia não se aplicariam às questões político-sociais.

Vale recordar que a nossa primeira Constituição, de 25 de março de 1824 (que vigeu por 65 anos até que houvesse o vergonhoso golpe de Estado de 15/11/1889 - fonte da instabilidade política atual), no artigo 179, inciso 4, já previa que "Todos podem comunicar os seus pensamentos, por palavras, escriptólogos, e publicá-los pela Imprensa, sem dependência de censura; com tanto que hajam de responder pelos abusos, que cometerem no exercício deste Direito, nos casos, e pela forma, que a Lei determinar."

Esse requisito final da reserva legal, de notória prudência, sabedoria e elevada técnica jurídica da Comissão Especial que elaborou a Carta de 1824 (assinada pelo mineiro João Severiano Maciel da Costa, presidente da Assembleia Constituinte, 1º Visconde com Grandeza e Marquês de Queluz; oriundo da magistratura, foi Desembargador) não tem na Carta atual, significando que os direitos e deveres relativos à livre manifestação do pensamento estão restritos ao que prevê a Constituição de 1988. Daí, qualquer legislação (civil, penal, eleitoral, etc.) que avance sobre a palavra escrita ou falada encontra blindagem constitucional intransponível, a ela devendo se adequar.

Por todo o exposto, há fundamento para se declarar a descriminalização dos dispositivos penais mencionados, nos termos do devido processo constitucional. Basta ver o que houve com a Lei de Imprensa, em 2009.

Incito-vos à reflexão.

Eduardo Tozzini, advogado.

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