Assisti ao filme franco-senegalês Mignonnes (2020), dirigido pela francesa Maïmouna Doucouré. O filme foi agraciado com o prêmio de melhor direção no Festival Sundance de Cinema, mas não pensem que uma premiação necessariamente significa a aprovação da maioria.

O filme é polêmico e chocante porque permeou o limiar daquilo que é socialmente aceito. A meu ver, ele cruzou essa barreira em algumas cenas. No entanto, devo admitir que o choque se deve mais ao fato de que o filme é assustadoramente realista

Sou professor e preocupo-me bastante com os jovens. Como ainda sou jovem, conheço na prática muitas das dores que assolam as vidas deles. Eu, no entanto, vivi o início da hiperexposição por meio das redes sociais. Nós utilizávamos o Orkut e o MSN que, à época, já anunciavam o prenuncio das mesmas ferramentas que poucos anos mais tarde viriam liquidificar (não seria gaseificar?) a mesma modernidade que provocou Zygmunt Bauman.

Voltemos ao filme. Na trama, a garota franco-senegalesa chamada Amy, com apenas 11 anos, depara-se com uma realidade contrastante: o lar conservador e rígido marcado pelos valores de uma das vertentes do Islã e a escola multiétnica composta por estudantes das mais diferentes culturas, sendo elas mais ou menos tolerantes quanto ao liberalismo (libertinagem?) ocidental. Dentro daquela “fauna escolar”, é claro, o topo da hierarquia social é ocupado por aqueles que detém (ou pelo menos o fingem) os ideais de beleza, bravura etc., então vigentes.

Amy passa por maus bocados em casa pois o pai se casou com outra mulher e, ao longo da trama, mostrou-se bastante ausente. Buscando fugir daquele desconforto, a menina se remodela física e mentalmente a fim de inserir-se em um grupo de meninas que se autodenomina mignonnes, que seria o equivalente a “gatinhas” em português. Buscando fazer jus ao título frente às cybercomunidades instagramers, tik tokers etc., as garotas investem naquilo que representa um dos maiores perigos para a nossa geração: a hiper sexualização de jovens e crianças.

Cenas exageradas de danças provocantes são intercaladas por situações não menos esdrúxulas como uma na qual uma das meninas encontra uma “bexiga colorida” no chão e, após enchê-la, é avisada aos berros pelas colegas de que aquilo era um preservativo e que, agora, ela estava fadada a morrer de câncer. Essa tentativa de comicidade busca romper com o sentimento desconfortável provocado pelas “danças” que circulam pelas redes e que infelizmente são muitas vezes interpretadas por crianças. Coloquei aquele substantivo entre parênteses porque sabemos que há situações nas quais a belíssima e sutil arte do bailar é injustamente confundida com simulações de lascívia gratuita.

Nessa semana, uma integrante do governo intimou a plataforma no qual o filme se encontra disponível a retirá-lo de seu catálogo. Discordo e fundamento minha opinião a partir do próprio filme. Em outra cena, uma das mignonnes afirma para a amiga que, em casa, ela não é ninguém. Na escola e nas redes, no entanto, ela é apreciada, visualizada, curtida e “amada”. O sorriso da garota enquanto dizia “as pessoas gostam de mim” era na verdade a expressão inconsciente do desespero, um pedido de ajuda.

Não quero simplificar toda essa problemática à um mero “vítimas da sociedade”. A situação é muito mais complexa do que isso. Há uma mescla de malcriação, descaso parental, uma realidade marcada por ferramentas incríveis que podem se tornar tóxicas, enfim, as problemáticas são múltiplas e censurar o filme não as resolverá, pois continuarão existindo e, uma vez que existem, precisamos pensá-las. Via de regra, fechar os olhos não faz os problemas sumirem.

O filme provoca e incomoda porque representa um problema que está logo a nossa frente.

Paulo Sérgio Micali Junior é professor e historiador em Londrina