Por onde começo a dizer que sou fã de esquinas? Pelas muitas histórias que se escrevem entre ruas? Pelas frestas que escoam o tempo no concreto frio das locações urbanas? Aliás, quanto tempo dura o tempo? Quantas ruas tem Lisboa?

Houve um tempo em que a vida era mais lenta – ou menos acelerada. Nesse tempo memória e desejo conjugavam o combustível que acendeu minha história, enquanto viver seguia sendo acomodar diferenças. Assim, diferente, vi minhas lembranças alcançarem um tempo onde destino e circunstância somavam nas encruzilhadas da história, manifestando mistério nos mecanismos de existir.

Hoje a vida meio que se apresenta dividida, desligada dos eventos passionais, deselegantemente rápida e despida de paixão...

Paixão, aliás, não está senão um luxo orgástico que se desliga das pessoas e projeta uma existência de nenhum questionamento, de exacerbado consumo, onde costumes abraçam ausências e o caminho de nossa distância encerra a conta do chá.

O que passou com o mundo? Mudou o viver? Mudei eu?

Imagino que a resposta alcance o aleatório da vida, naquilo que é nas beiradas que se alinham as fantasias e o mistério apruma o todo. Penso (mesmo) que o destino deve muito de seu caminho (superestimado) a visão romantizada da cigana leitora de mãos.

Bote reparo: a tal cigana nunca atende em uma esquina. É sempre em uma praça, uma via tribulada, dessas onde a vida carrega as gentes que o mundo faz, espraiando a necessidade de se criar conteúdo a cada momento distinto que as miudezas agregam ao dia.

Demais disso, vivemos uma época onde o barulho desconstruiu o silêncio, levando junto a contemplação e muito de nossa capacidade de sentir. Por isso pensamos pouco e sentimos menos.

Viver, hoje, se confunde com criar conteúdo – que este é um substituto da própria vida para os aficionados de rede social. Assim é que se levanta um multiverso em cada esquina, onde ‘o que eu sou se afoga’.

Noves fora, entre esquinas e praças, sem desmerecer estas, fecho com aquelas, muito porque praças são tão faladas e lembradas que não me pega entrar nessa fila de todo mundo, que leva a lugar algum – já que a praça nasce e morre praça, ladeada de ruas e cortada de árvores solitárias.

Demais disso, há muita estátua de sabe-se lá quem espraiadas pelo rossio, exaltando quem do passado não se conhece o suficiente da história. Quase sempre um fardado estrelado cuja apoteose foi a morte. Poucas vezes temos poetas e filósofos lembrados em largos. Esse fetiche idiotizante espelha a morte e sugere sobrepor o sopro da vida.

Quanta falta faz uma jabuticabeira pelo espaço público a ofertar pequenas porções negras de vida aos que se entregam à arte de colher o fruto do pé, como quem beija a felicidade em pedaços.

Sigo caçando jabuticaba, naquilo que ela guarda o gosto de minha infância, onde a resiliência da florada respondendo a equação do tempo forjou no jovem de então a vontade de entender a vida pelos olhos da caminhada – dias de luta, dias de glória; não sem jabuticabas em esquinas mundo afora.

Pois muito bem. Devidamente estabelecida minha relação ancestral com a varanda da vida, me apresso lembrar o quanto de esquina trago em mim, naquilo que perdi a praça para as estátuas que não cultuam jabuticabas – nem pitangas.

Meio que cansado de minhas memórias, voltei a amar o que de ontem ainda pulsa em mim. No ponto, sempre foram as esquinas a alimentar ilusões e contrapor projetos de mais (valia e querença), espraiando na completude de nosso modelo de viver (ter já é mais que ser) amálgamas neoliberais desligados da equação de apego que o ‘way of life’ descontinuou, tramando em meio ao caminho onde nos encontramos com a nostalgia do boteco, contando a mesma história tantas vezes dita...

Tem sido assim há muito tempo – Tic tac. Tic tac. Tic tac...

Enquanto a vida segue minha sede enviesa o convívio em balcões de ‘bares pelo mundo’ (obrigado Chico Raiz, de certeza ‘conta ponto’), observando ilusão e deleite na costura de meus anseios, enquanto me conforto na beleza de dias que a terra viveu.

Gole sobre gole, consumimos a dor de ser em esquinas do viver, desenhando nossa ventura no recorte de lembranças dos dias de ilusão.

Já fomos sábios. Estamos paralisados na socialização das redes, onde os relacionamentos são mais falsos que uma valsa despedida. Ignorar nosso tempo já não é desconhecer o caminho e sim não se importar com o destino. Nem aproveitamos a viagem, nem valorizamos o ponto de partida.

Estamos em um modo conformista que abarca de passado a futuro, desiludindo o presente. A vida é seu próprio multiverso, naquilo que ao discutir um mínimo de humanidade na escala de trabalho, o tecnocrata pauta seu apego na negação de um dia de nada, ao argumento mentiroso (quanto de fake há no mundo? Quantas ruas tem Lisboa, Amália?) de que a economia será afetada.

Que economia, cara pálida?

Dias de luta, dias de glória. Tempo de redescobrir nas esquinas o sopro de vida que perdemos com a marcha do capital sobre os dias de nada à que o homem sempre teve direito.

Enquanto isso, a economia segue em frente, com um dia a menos de exploração em mais valia.

Tristes trópicos ‘onde o que eu sou se afoga’ na semana inglesa.

Saudade Pai!

João dos Santos Gomes Filho, advogado