Algumas alterações legislativas que, supostamente, deveriam vir para melhorar o cenário jurídico atual, acabam por criar problemas gigantescos e desnecessários. E o nem tão novo Código de Processo Civil – CPC (de 2.015), no tocante ao direito societário, gerou um impasse terrível para os incautos, principalmente em casos de falecimento de sócios.

Pelo Princípio da Saisine (art. 1.784 do Código Civil - CC), com o falecimento de uma pessoa, os bens que compõem a sua herança são automaticamente transmitidos aos herdeiros e legatários. Mas isso não se aplica, necessariamente, ao direito sobre as cotas sociais que o falecido possuía.

De acordo com o inciso II do artigo 1.028 desse Código (de 2.002), é possível que os sócios remanescentes recusem os herdeiros, “liquidando” a participação societária que caberia aos mesmos, que, pela sistemática de avaliação formal (geração de caixa), quase sempre resulta em valor ínfimo.

E, por essa previsão legal, dorme-se aguardando a herança (cotas) e, com o falecimento, acorda-se praticamente sem patrimônio (em razão das baixas avaliações das cotas liquidadas), perdendo os herdeiros a possível condição de sócios.

Para que se evitasse isso, passou a ser adotado, nos contratos sociais, a previsão do inciso I desse artigo, fazendo constar dos mesmos, expressamente, que os sócios seriam obrigados a admitir os herdeiros do sócio falecido. E isso foi acatado pelos Tribunais, de modo que nenhum questionamento havia sobre isso até então.

Contudo, pelo texto do inciso III do artigo 600 do atual CPC (lei posterior), poderão os sócios remanescentes recusar os herdeiros na sociedade, ainda que esse fato esteja previsto no contrato social.

Dito de outra forma, alterou-se o texto legal sobre a matéria, o que se depreende do previsto no §1º, do artigo 2º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (revogação tácita).

E isso também significa dizer que, com a possibilidade da recusa dos herdeiros pelos sócios remanescentes, inicia-se um processo judicial de dissolução parcial de sociedade que, num cenário otimista, durará ao menos cinco anos e, no outro, mais de dez, para que, somente ao final, se inicie a apuração do crédito que caberá aos herdeiros que, enquanto isso, ficam sem nada.

Se, por óbvio, essa previsão legal parece ser por demais estapafúrdia (e o é, como também é grande parte das mudanças sobre dissolução de sociedade do novo CPC), o fato é que já existem diretrizes registrais para a implementação dessa mudança deletéria.

O Tópico 4.5 do Manual de Registro de Sociedade Limitada, aprovado pela Normativa nº 8.111/2.020, do Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração (DREI), com redação conferida pela Instrução Normativa nº 11.222/2.0222 do mesmo DREI, menciona que, ainda que exista previsão no contrato social, de admissão dos herdeiros do sócio falecido, poderão os sócios remanescentes optar pela não aceitação desses últimos, mediante remuneração das cotas do falecido, nos termos acima.

E ainda, caso, no Judiciário, se convalide essa posição, nenhum valor, a título de dividendos, terão os herdeiros após o falecimento, em razão do termo de fixação da dissolução parcial (balanço corte a ser feito na data do falecimento), tendo os herdeiros que aguardar o pagamento do valor das cotas sociais ao final do processo – nunca satisfatório.

E por mais que haja muitas vozes argumentando que essa situação seja absurda e inaplicável, e que o CPC versa sobre direito formal (não podendo alterar direito material previsto no Código Civil), ou que o texto está mal escrito, o fato é que não existe consenso sobre o tema e, muito menos, posições sólidas de Tribunais sobre esse impasse grotesco. E o STJ ainda levará anos para dispor sobre essa contraposição entre leis.

Enquanto isso, portas abertas para que múltiplas confusões venham a surgir. E, como sempre, a inevitável morosidade dos processos conta a favor dos sócios remanescentes, ficando os herdeiros a “ver navios” por incontáveis anos, ou tendo que se submeter ao sufocamento financeiro promovido pelos sócios remanescentes.

Solução? Enquanto não se sabe o final da história, a doação das cotas (registrada no contrato social) com reserva de usufruto vitalício resolve o problema. Ou converter-se a sociedade limitada em anônima fechada, onde essa regra é inaplicável (por mais dantesco que possa parecer haver duas regras distintas, para modalidades societárias tão similares).

Situações como essa trazem à tona a frase de Bernard Shaw, de que “todas as profissões são conspirações contra os leigos”. E aos que operam no direito, fica o desabafo do saudoso jurista Alfredo Becker, frente a situações jurídicas sem sentido, quando dizia que: “Entre o direito e a abóbora, eu optei pela abóbora”.

Roberto de Mello Severo, advogado

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