Alguém fala cuidados paliativos e na sequência o diálogo traz a palavra morte. Por que ainda é assim? Os profissionais que trabalham em cuidados paliativos cuidam de pessoas vivas. Aliás tão vivas que querem viver com mais qualidade o tempo que resta. Seria simples, mas não é bem assim no nosso dia a dia.

Aprendi a cuidar de pessoas vivas na faculdade de medicina. Por algum motivo, me encantei com aquelas mais graves, que estão na linha tênue da vida. E esta escolha veio com um preço alto: conhecer o fim da vida.

Quando eu era menina, acompanhei atentamente o adoecimento do ex-governador de São Paulo Mário Covas. Os jornais noticiavam o boletim médico: grave e incurável. Eu me questionava o porquê de os médicos indicarem tanta coisa diante do inevitável. Me parecia mais importante analgésicos e ficar perto de quem ele amava. Quando o vi numa foto na capa do jornal, ao lado de sua esposa, sorrindo e deixando o hospital fiquei feliz. Vinte anos depois, pude acompanhar o adoecimento de seu neto, Bruno Covas. Felizmente, os cuidados paliativos já estavam mais estruturados no país. Graças a estas preocupações, desde cedo me transformei na médica paliativista que hoje sou.

Ouvi as palavras “cuidados paliativos” pela primeira vez quando já estava formada. Aquilo fazia todo sentido para a médica que eu queria ser e para pessoas doentes que eu cuidava no dia a dia. Na trajetória de formação como paliativista fiquei grata ao saber que o próprio governador Mário Covas assinou uma lei há quase 25 anos que permitia aos pacientes recusarem tratamentos dolorosos e extraordinários e escolher o local de morte.

O adoecer tem dessas: as pessoas repensam o viver, o adoecer e o morrer. Passa-se daquela etapa imatura de bater na madeira para afastar o indesejável, para o cuidar de pessoas da maneira responsável. Há vários casos recentes de famosos que receberam cuidados paliativos e foram notícia no país: o jogador Pelé, a cantora Rita Lee e mais recentemente a atriz Aracy Balabanian. Que um dia todos possam receber este cuidado.

Cabe esclarecer que os cuidados paliativos tratam de pessoas que têm um diagnóstico de doenças graves e recebem os tratamentos voltados para cura (ou controle da doença) junto dos tratamentos que aliviam sintomas desconfortáveis e sofrimentos. E a gente busca melhorar a qualidade de vida durante a vida. Ninguém precisa desistir de nada (ou de tudo) para receber cuidados paliativos. A gente cuida e deixa a vida melhor. O que isso pode ter de errado?

Às vezes as pessoas doentes têm diagnóstico curável e, outras vezes, incurável. Nossa tarefa é cuidar das pessoas em todas as etapas, fazer diagnósticos e propor tratamentos que reduzam sofrimentos como a dor, falta de ar e apoiar na ansiedade, medos e sentidos da vida.

A realidade dos cuidados paliativos ainda é para pouca gente. De acordo com a Organização Mundial de Saúde, apenas 14% das pessoas com demandas paliativas têm seus sofrimentos acolhidos no mundo. É muito pouca gente! Para esta maioria resta seguir no curso inevitável da vida e ter a sorte de encontrar profissionais com preparo técnico.

Cuidados paliativos envolvem uma tecnologia de última geração: humanos que cuidam de outros humanos. Se tem vida, a gente está lá: fazendo a escuta e cuidando de dores físicas intensas e complexas. Tudo isso para dizer que os cuidados paliativos valorizam a vida, promovem o bem-estar, respeitam a autonomia da pessoa e fornecem apoio integral aos pacientes e familiares.

Cuidados Paliativos cuidam de pessoas vivas. Bem vivas!

Úrsula Guirro é médica em Curitiba, professora adjunta na Universidade Federal do Paraná e diretora financeira da Academia Nacional de Cuidados Paliativos

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