Os últimos anos foram difíceis. Pandemia, mortes, negacionismo, ataques às instituições democráticas, armamentismo, fome, fila do osso, cercadinho, fake news, destruição ambiental, bezerro de ouro no altar da educação, golpismo, ataque aos Poderes da República. Enfim, um tempo que se espera sepultado no passado, porém, em vívida e pedagógica memória a impedir que o futuro repita tamanho desalinho.

No correr desse tempo, muitos respiraram a mesmice do cotidiano. Outros viram o espírito de uma época e engrossaram a turba da necropolítica. Outros ainda avistaram a tempestade e mesmo assim assumiram confortavelmente a posição de cínicos. Poucos foram os que emprestaram voz, coragem e sabedoria para denunciar os ventos uivantes que ardiam na noite traiçoeira da morte e, acima de tudo, para depor contra aqueles que acendiam fogueiras desejosos de queimar, como inquisidores, reputações, instituições e parte da civilidade humana.

Padre Manuel Joaquim fez, inúmeras vezes, uso deste “espaço aberto” para lançar sua voz poderosa contra o “estado da arte” desse tempo sombrio. Na escuridão conflagrada pela ignorância, pela raiva e pelo ódio disseminados sob a indumentária digital, padre Manuel Joaquim escrevia. Sobreviveu escrevendo. E escreveu nas páginas desta FOLHA, que sempre acolheu vozes plurais, de forma democrática e republicana, para dizer que a política não é salvo-conduto para cometer atrocidades. Do jornal, púlpito da cidadania, suas ideias carregadas de tintas guardaram uma franja da nossa história, agora formatada em livro.

Em seu recolhimento, padre Manuel Joaquim devotou tempo para refletir e materializar pensamentos em textos. Seu livro “Sobrevivi escrevendo” (Engenho das Letras) – que será lançado no próximo dia 27 –, com identidade visual em linhas leves e contornos suaves, projeta um tempo embebido de novos horizontes. É tempo de a esperança ressurgir. É tempo de reconstruir. É tempo de o amor ocupar o lugar do ódio; de a democracia sobrepor-se às pretensões golpistas; de o iluminismo dissipar a ignorância; de a fé recobrar que o Cristianismo não coaduna com armamentismo. É tempo de pactuar relações civilizadas, permeadas de respeito e de empatia.

O livro do padre Manuel Joaquim não se compara ao diário de um historiador helenista, apenas ocupado em documentar para a posteridade as mazelas de uma época cadente. É, ao contrário, um livro intervencionista, que estimula a reflexão e cobra atitude diante dos desafios impostos pelo presente. Traça diagnósticos sem perder a confiança de construir prognósticos factíveis. Não se perde em utopias irrealizáveis. Não afaga egos presos em bolhas ególatras, sintoma pandêmico semelhante ao narrado por seu conterrâneo, José Saramago, no clássico Ensaio sobre a Cegueira.

Padre Manuel Joaquim transpôs além-mar a semântica da revolução dos Cravos. Sabe melhor que muitos de nós o custo de uma ditadura. Tal como o Apóstolo Paulo, um cidadão religioso, é conhecedor da imperiosa distinção entre religião e política. Não faz política a partir do púlpito nem partidariza a religião, mas encara a política com a responsabilidade que ela merece e a religião com respeito que lhe cabe. Sabe da importância de haver religiosos honestos com sua fé e de cidadãos que atuem autonomamente na esfera pública sem as mandingas de religiosos inescrupulosos que prostituem a política no mercado da fé. Religião e política são duas instâncias com características próprias, as quais não podem ser reduzidas uma a outra, mas devem convergir em debate aberto, construtivo e solidário.

A mensagem do livro impõe um tom crítico e didático e, ao mesmo tempo, desvela a amabilidade própria de quem, como o padre Manuel Joaquim, segue verdadeiramente os passos do Mestre de Nazaré. Autêntico, sábio e fiel aos princípios democráticos e cristãos.

Clodomiro José Bannwart Júnior é professor de Ética e Filosofia Política na Universidade Estadual de Londrina

Os artigos, cartas e comentários publicados não refletem, necessariamente, a opinião da Folha de Londrina, que os reproduz em exercício da sua atividade jornalística e diante da liberdade de expressão e comunicação que lhes são inerentes.

COMO PARTICIPAR| Os artigos devem conter dados do autor e ter no máximo 3.800 caracteres e no mínimo 1.500 caracteres. As cartas devem ter no máximo 700 caracteres e vir acompanhadas de nome completo, RG, endereço, cidade, telefone e profissão ou ocupação.| As opiniões poderão ser resumidas pelo jornal. | ENVIE PARA [email protected]