ESPAÇO ABERTO: Colonização dos costumes
Segue certo meu avô (Paulo Isaías) em sua máxima da capacidade de piora do que sempre foi ruim
PUBLICAÇÃO
sábado, 15 de junho de 2024
Segue certo meu avô (Paulo Isaías) em sua máxima da capacidade de piora do que sempre foi ruim
João dos Santos Gomes Filho
Assisto, assombrado, a recepção de urgência implementada pela Câmara Federal à tramitação de um projeto de lei que equipara o aborto legal realizado após a 22ª semana ao homicídio. Li, reli e três li o que acabei de escrever e é isso mesmo. Pior é que, com essa decisão enviesada da Câmara, o texto não precisará passar por comissões, podendo ser levado diretamente e a qualquer momento à votação plenária.
Na prática, os deputados estabeleceram uma fake news legislativa, naquilo que criam a falsa similitude entre uma circunstância reconhecida e autorizada pelo estado (aborto legal) e um crime bárbaro (estupro), para atender a pauta de costumes cara ao conservadorismo aviltante que atrasa o desenvolvimento humano por aqui e, assim, amealhar likes eleitoreiros.
As mulheres se mobilizam (e eu com elas) e há uma grita geral na sociedade, por seus seguimentos progressistas, naquilo que a decisão da Câmara, seguindo o caminho do mal, desenha uma aberração legiferante, que (re)vitimiza vítimas da barbárie e selvageria (estupro) até então reconhecidas e albergadas pela legislação.
Segue certo meu avô (Paulo Isaías) em sua máxima da capacidade de piora do que sempre foi ruim, quando se trata de dar asas à imaginação conservadora – e olhe que ele mesmo era um conservador, dada a antiguidade de sua educação secular, naquilo que o meu matuto favorito nasceu em 1900...
Aqui o gado segue a trilha da estupidez, catapultada na aventura das eminências religiosas que atuam na vida política, sempre a serviço do patriarcado e da elite econômica.
A bem da verdade (e desde os primórdios) nossa elite patriarcal abraçou o sínodo das religiões, com quem estabeleceu um trato antigo e covarde, tangido pelo amálgama do fundamentalismo, naquilo que o controle de corpos e pensamentos femininos sempre foi a pauta favorita dos impotentes de sentimentos, suposto que ao perpassarem a angústia ancestral das mulheres, obrigadas à gestar e parir, buscaram apenas e tão somente abastecer o mercado de mão de obra barata, em afago ao grande capital.
Não há forma outra de dizer isso, então digamo-lo logo: aborto é matéria de pertença exclusivamente feminina, suposto que apenas a mulher pode engravidar e, assim, ser sujeita deste tipo julgal, naquilo que seu corpo é de sua exclusiva pertença, não sendo legítima qualquer incursão do homem sobre o que é de domínio feminino.
Assim, qualquer homem que se aventure discutir o tema, além de não ter a devida legitimidade (sequer de caráter humanitário), não faz senão tutelar os interesses do patriarcado que se vale (desde sempre) de sua força e dos guardiões religiosos do machismo, para plantar mão de obra barata e não especializada na reiteração da trilha da riqueza construída com a exploração do trabalho alheio.
De toda sorte me parece inadmissível que (em pleno século XXI) a pauta de costumes siga a segurar o trem do desenvolvimento pela manga.
A vítima desse descalabro segue sendo a mulher – a destempo dos discursos (muitos) justificativos da salvaguarda das vidas, naquilo que (por aqui) a imensa maioria das vítimas de estupro são jovens, negras e sem qualquer perspectiva de ascensão. Deveras, estas meninas mulheres estão na casa dos 14 anos, conforme estudo/pesquisa de uma universidade.
No ponto segue a apropriação da pauta de costumes pela direita, em atenção ao projeto dos fascistas de colonizar nosso modo de vida (meninos de azul, meninas de rosa e Jesus na goiabeira) por seu mais caro alter ego – o ‘cidadão de bem’, desenhado enquanto terraplanista, machista, misógino, homofóbico e, sim, radicalmente contra o aborto, até que sua amante engravide. Também pode mudar o seu entendimento se sua filha engravidar do motorista ou do jardineiro. Se algum destes for negro, aí então já viu...
Noves fora a malevolência de nossos dias de liturgia bifurcada, onde o homem fundamentaliza a palavra e cede a tentação de um Deus bipolar, ora terrivelmente opressor, ora arquiteto universal que se projeta no sucesso e na prosperidade dos seus filhos, o amálgama religioso jamais produziu algo de positivo às sociedades ao se imiscuir na vida política – não por acaso nosso estado é laico.
Calma que eu não estou a satanizar as religiões e sim lembrando seu lugar de fala.
De toda sorte e para além da fundamentalização de nossos dias, não há qualquer racionalidade ou razoabilidade na equiparação a que se propõe o projeto de lei em comento. Quer em face de sua originária base fake (não se pune o que a lei autoriza), quer na conta de seu indisfarçável objetivo (seguir colonizando o corpo e a mente das mulheres).
Tristes trópicos. Aqui a vida segue no século XVIII, com a imensa desvantagem do desmatamento da Mata Atlântica e da Amazônia legal – além da brevidade com que os Beatles passaram por nós.
Saudade Pai.
João dos Santos Gomes Filho, advogado
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