Assisto, assombrado, a recepção de urgência implementada pela Câmara Federal à tramitação de um projeto de lei que equipara o aborto legal realizado após a 22ª semana ao homicídio. Li, reli e três li o que acabei de escrever e é isso mesmo. Pior é que, com essa decisão enviesada da Câmara, o texto não precisará passar por comissões, podendo ser levado diretamente e a qualquer momento à votação plenária.

Na prática, os deputados estabeleceram uma fake news legislativa, naquilo que criam a falsa similitude entre uma circunstância reconhecida e autorizada pelo estado (aborto legal) e um crime bárbaro (estupro), para atender a pauta de costumes cara ao conservadorismo aviltante que atrasa o desenvolvimento humano por aqui e, assim, amealhar likes eleitoreiros.

As mulheres se mobilizam (e eu com elas) e há uma grita geral na sociedade, por seus seguimentos progressistas, naquilo que a decisão da Câmara, seguindo o caminho do mal, desenha uma aberração legiferante, que (re)vitimiza vítimas da barbárie e selvageria (estupro) até então reconhecidas e albergadas pela legislação.

Segue certo meu avô (Paulo Isaías) em sua máxima da capacidade de piora do que sempre foi ruim, quando se trata de dar asas à imaginação conservadora – e olhe que ele mesmo era um conservador, dada a antiguidade de sua educação secular, naquilo que o meu matuto favorito nasceu em 1900...

Aqui o gado segue a trilha da estupidez, catapultada na aventura das eminências religiosas que atuam na vida política, sempre a serviço do patriarcado e da elite econômica.

A bem da verdade (e desde os primórdios) nossa elite patriarcal abraçou o sínodo das religiões, com quem estabeleceu um trato antigo e covarde, tangido pelo amálgama do fundamentalismo, naquilo que o controle de corpos e pensamentos femininos sempre foi a pauta favorita dos impotentes de sentimentos, suposto que ao perpassarem a angústia ancestral das mulheres, obrigadas à gestar e parir, buscaram apenas e tão somente abastecer o mercado de mão de obra barata, em afago ao grande capital.

Não há forma outra de dizer isso, então digamo-lo logo: aborto é matéria de pertença exclusivamente feminina, suposto que apenas a mulher pode engravidar e, assim, ser sujeita deste tipo julgal, naquilo que seu corpo é de sua exclusiva pertença, não sendo legítima qualquer incursão do homem sobre o que é de domínio feminino.

Assim, qualquer homem que se aventure discutir o tema, além de não ter a devida legitimidade (sequer de caráter humanitário), não faz senão tutelar os interesses do patriarcado que se vale (desde sempre) de sua força e dos guardiões religiosos do machismo, para plantar mão de obra barata e não especializada na reiteração da trilha da riqueza construída com a exploração do trabalho alheio.

De toda sorte me parece inadmissível que (em pleno século XXI) a pauta de costumes siga a segurar o trem do desenvolvimento pela manga.

A vítima desse descalabro segue sendo a mulher – a destempo dos discursos (muitos) justificativos da salvaguarda das vidas, naquilo que (por aqui) a imensa maioria das vítimas de estupro são jovens, negras e sem qualquer perspectiva de ascensão. Deveras, estas meninas mulheres estão na casa dos 14 anos, conforme estudo/pesquisa de uma universidade.

No ponto segue a apropriação da pauta de costumes pela direita, em atenção ao projeto dos fascistas de colonizar nosso modo de vida (meninos de azul, meninas de rosa e Jesus na goiabeira) por seu mais caro alter ego – o ‘cidadão de bem’, desenhado enquanto terraplanista, machista, misógino, homofóbico e, sim, radicalmente contra o aborto, até que sua amante engravide. Também pode mudar o seu entendimento se sua filha engravidar do motorista ou do jardineiro. Se algum destes for negro, aí então já viu...

Noves fora a malevolência de nossos dias de liturgia bifurcada, onde o homem fundamentaliza a palavra e cede a tentação de um Deus bipolar, ora terrivelmente opressor, ora arquiteto universal que se projeta no sucesso e na prosperidade dos seus filhos, o amálgama religioso jamais produziu algo de positivo às sociedades ao se imiscuir na vida política – não por acaso nosso estado é laico.

Calma que eu não estou a satanizar as religiões e sim lembrando seu lugar de fala.

De toda sorte e para além da fundamentalização de nossos dias, não há qualquer racionalidade ou razoabilidade na equiparação a que se propõe o projeto de lei em comento. Quer em face de sua originária base fake (não se pune o que a lei autoriza), quer na conta de seu indisfarçável objetivo (seguir colonizando o corpo e a mente das mulheres).

Tristes trópicos. Aqui a vida segue no século XVIII, com a imensa desvantagem do desmatamento da Mata Atlântica e da Amazônia legal – além da brevidade com que os Beatles passaram por nós.

Saudade Pai.

João dos Santos Gomes Filho, advogado

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