Ao se deparar com o presente artigo, o leitor deve logo saber que ele foi escrito por dois homens. Então, em seguida, talvez se pense que homens não possuem lugar de fala para tratar o assunto do aborto, já que o tema trataria de uma questão exclusivamente feminina. Nesse sentido, aqui queremos responder à seguinte questão: homens também podem opinar sobre o aborto? Responderemos que sim e daremos os nossos motivos a seguir.

A expressão “lugar de fala” normalmente é utilizada como uma capciosa cartada argumentativa. O sentido profundo disso é que a própria pessoa utiliza seus interesses e experiências pessoais para tentar dar maior rigor ou validação para seu discurso. Talvez se possa pensar em níveis do tal “lugar de fala”. Por exemplo, os negros teriam mais experiência para falar do racismo e as mulheres para falarem sobre o aborto. Mas disso surge um problema: e se essas pessoas oferecerem argumentos ruins? Por exemplo, o negro que queira defender a não existência histórica do racismo e a mulher que seja contrária ao aborto, mesmo nos casos de estupro (a nosso ver, é um tremendo equívoco moral o não reconhecimento do direito ao aborto nesse caso).

Destoando completamente da ideia esquisita contida na expressão “lugar de fala”, a filosofia ensina outra coisa: que não importa quem você seja – homem, mulher, rico, pobre, europeu ou africano – se você tiver bons argumentos para tratar de qualquer assunto, então você está habilitado para o debate. Do contrário, não importa quem você seja, se seus argumentos forem ruins, sua queridinha cartada argumentativa do “lugar de fala” não valerá nada. Para nós, o debate público só tem a ganhar quando voltamos nossa atenção prioritariamente à análise de conceitos e argumentos, sem nos preocuparmos com as características ou com a identidade do sujeito.

É verdade que um homem não sofre em sua pele o que uma mulher sofre em sua pele, mas ele pode ter uma ideia correta sobre o sofrimento da mulher e insurgir-se contra a injustiça de que ela é vítima.

O chamado “lugar de fala” não apenas empobrece o debate público como o inviabiliza. A nosso ver, o jogo do debate precisa, sobretudo, de boas definições dos conceitos, apresentação clara de princípios (e saber aplicá-los), boa-fé, recusa de argumentos que desqualifiquem quem diz, em vez de dar atenção ao que é dito.

Expandindo um pouco o ponto, vale mencionar a seguinte e ilustrativa consideração. Embora nenhum defensor do direito ao aborto acredite – tanto quanto saibamos – que sua opinião seja equivalente à defesa da morte de seres humanos inocentes, talvez, vamos admitir, ele esteja errado. Talvez Maria (opositora do direito ao aborto) tenha razão ao dizer que Paulo (defensor do direito ao aborto) esteja forçando uma distinção inexistente (aborto e morte de seres humanos inocentes). Mas isso é diferente de Maria acusar Paulo de defender a morte de pessoas inocentes. Com efeito, Maria apenas poderia dizer que Paulo comete um erro intelectual. Ou seja, Maria acredita que Paulo erra ao não notar a equivalência conceitual entre o caso de matar um ser humano inocente e interromper voluntariamente uma gravidez. Assim, supõe-se que, se Paulo percebesse essa equivalência, ele seria contra o direito ao aborto.

Pronto, aqui temos um ponto de apoio firme para o debate. Os litigantes estão de acordo que matar uma pessoa inocente é moralmente errado. Eles discordam acerca da aplicação desse princípio moral. Nenhum deles defende algo moralmente extravagante que exigiria a acusação direta de falhas no caráter do debatedor ou de interesses inconfessáveis em função de gênero, raça, classe social ou filiação ideológica. Há, pois, um denominador moral comum entre Maria e Paulo: não se admite que seres humanos tenham o direito de matar seres humanos inocentes.

A expressão “lugar de fala” flerta com um inescapável particularismo de nossos juízos e convicções morais. Nós, ao contrário, acreditamos que todos os seres humanos podem discutir moralmente em pé de igualdade (o aborto, para nós, é antes de tudo um assunto moral), tendo por suposto que o uso a razão e os juízos morais explicitam nossa humanidade comum.

Aguinaldo Pavão, professor de Filosofia da UEL, e Antonio Alves, doutorando em filosofia na UEL e professor de filosofia da UniCesumar

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