A pandemia aflorou em mim certa ruptura cognitiva com o significado da morte, naquilo que morrer no andar da vida seria, a meu ver, uma coisa lógica, suposto que o passamento tende a naturalizar biologicamente o processo todo, ao passo que, adormecer pela incidência de uma pandemia em pleno século XXI, sob o signo da penicilina e com todos os avanços científicos que a humanidade contabiliza, é outra coisa.

Então e assim, não é de hoje, estou nessa bolha emocional e não consigo mais manter um convívio racional com o evento final – ainda que siga buscando um recomeço equilibrado com a morte.

Com a pauta do final das cousas em vista, recebo semana que passou a notícia do decreto judicial da falência da Livraria Cultura – a maior de São Paulo e palco de inúmeras incursões (minhas) à procura do cálice sagrado da literatura.

Foram muitos os momentos vividos no interior da Livraria Cultura, no número 2.073 da avenida Paulista, localizada no conjunto Nacional. Minha traiçoeira memória diz ter sido lá (então e também, pode ter sido na Livraria Saraiva da Praça da Sé, 423) que, nos anos oitenta, comprei meu primeiro livro de John Fante (Ask the Dust/Pergunte ao Pó) e pude conhecer meu alter ego Arturo Bandini.

Desde então sou mais que grato a Cultura (ou a Saraiva), pela experiência única de conviver com Bandini.

Ironia imorredoura é que a anunciação da morte da Cultura, por gestão econômica, me parece muito pior do que o passamento pela incidência da pandemia, naquilo que não há interação da natureza na morte da livraria, e sim do homem.

Bobagens neoliberais à parte, vem à lembrança Bandini enquanto retratista da depressão estadunidense (1929, com a quebra da bolsa de Nova York, ao final dos anos 30), naquilo que a sociedade desenhada refletia personagens em polo de convívio com a desesperança do período, retratando a necessidade de humanizar o contrato social, sob os olhos de um adolescente que sonhava ser escritor.

Três décadas depois, assisto a Livraria Cultura morrer, por ordem judicial.

Irônico que nossa dificuldade financeira (até 2016 éramos a sexta economia do mundo, hoje devemos estar em 15º lugar nesta escala) não me parece fruto de uma grande depressão (feito a estadunidense), naquilo que para os pilgrins a recuperação do solo europeu, então afetado e desconstruído à ponto de se tornar improdutivo (pela ação das muitas bombas que dilaceraram a terra dos combatentes na primeira grande guerra), significou uma quase que imediata interrupção de importação de produtos agrícolas norte americanos.

Essa medida fez encalhar o gigantesco estoque de produtos agrícolas e o seu não escoamento abrupto impediu o fluxo de caixa que se estabeleceu por mais de uma década com a Europa. Isso quebrou a bolsa e estabeleceu a depressão que durou mais de uma década.

E com a Cultura, qual foi a causa morte?

Desconheço o que pegou no entorno da linha administrativa da Livraria, mas não consigo deixar de estabelecer parâmetros, com nossos vizinhos platinos, que preservam o estranho hábito da leitura.

Deveras, no Brasil há uma relação proporcional de três livrarias a cada cem mil habitantes. Em Argentina esse número é de 25 livrarias por cem mil habitantes. Há que se pensar sobre esses números!

Essa proporção, todavia, estabelece pistas seguras, que sustentam os inúmeros estudos que já estão sendo feitos, para explicar o motivo da ascensão nazi fascista por aqui – notadamente no estado do Paraná.

Em que isso pese (e pesa), não é fruto do acaso o fenômeno bolsonarista, legitimador de um projeto autoritário que alberga a ideia totalitária do pensamento único, legitimar a banalização do mal...

A toda evidência, o abandono dos livros em favor da arma, faz aflorar a desproporção sensível estabelecida entre o número de livrarias e a quantidade de habitantes.

Assim é que a falência da Livraria Cultura meio que traduz a falência do modelo neoliberal, naquilo que preparamos pessoas para merecer, quando, em verdade, deveríamos nos preocupar em diminuir o abismo econômico que retrata nosso convívio.

Tristes trópicos; aqui quem morre é o que busca fazer a diferença.

Saudade Pai.

João dos Santos Gomes Filho, Advogado

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