É um dos assuntos mais espinhosos e delicados. A cada vez que o Brasil é confrontado com situações dilacerantes, como a da criança que engravidou vítima de estupro em Santa Catarina, a sociedade entra em grande efervescência, o que não deixa de ser legítimo, defendendo os seus pontos de vista. A ciência não é ignorada mesmo quando as convicções são morais e religiosas. Se por exemplo, um religioso acredita que existe uma vida desde o ato da concepção, porque a biologia lhe garante que quando o zigoto forma a sua própria identidade genética, a partir da herança recebida dos pais, o seu material genético está em condições de começar o seu desenvolvimento, não lhe interessará muito especificar que “tipo de vida” nos primeiros momentos ou semanas, uma vez que, para ele, trata-se de uma “vida humana”!

A razão mais elementar deste juízo, está na convicção plena de que a vida é um bem, um valor, que o ultrapassa existencialmente e que embora obedeça a processos considerados conaturais a outros seres, vai além ontologicamente, remetendo a sua origem ao transcendente. Por conseguinte, para os crentes em geral, a vida humana é inegociável do início ao fim, porque em última análise, ela não pertence ao ser humano!

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Mas tem mais! As convicções conceituais dos crentes, se fundem antropologicamente com uma outra crença fundamental: “A nova célula, possui uma identidade genética própria, diferente da que pertence aos que lhe transmitiram a vida, e a capacidade de regular o seu próprio desenvolvimento, o qual, se não for interrompido, passará por cada um dos estágios evolutivos do ser vivo, até a sua morte natural” (Patrícia Navas González).

Ora, a vida pós-fecundação não é um apêndice de outro ser, incluindo aqui a sua mãe! Sendo assim, embora indefesa, essa vida reclama atenção, cuidados e preservação. É esta a grosso modo, a posição da Igreja Católica, alimentada pela Bíblia e pelo magistério. Todos os papas se manifestaram contra o aborto em qualquer circunstância, pois a dimensão do sacrifício da vida da própria mãe, levada às raias do martírio, não é uma linguagem estranha a esta instituição! A disponibilidade da vida em favor de terceiros encontra o seu fundamento no próprio Cristo.

Posto isto, vamos aos fatos e às implicações.

No país, um milhão de abortos induzidos ocorrem todos os anos e levam 250 mil mulheres à hospitalização. Isto, apesar da proibição do aborto. Portanto, não creio que a questão no Brasil se resuma a ser a favor ou contra! Sobre criminalizá-lo ou descriminalizá-lo! O que está em discussão é se esses abortos serão legais ou clandestinos, seguros ou com risco e o quanto os brasileiros em suas convicções profundas, influenciarão o seu Código Penal para a matéria!

Se me perguntarem por que numa nação majoritariamente cristã (católica e evangélica), leis como a descriminalização do aborto possam passar, não saberei responder! Mas é óbvio, que essa lei se submeterá a outros valores, que a atual sociedade já tornou “absolutos”! O direito da mulher de dispor do seu corpo! O dever do Estado em cuidar da saúde total dos cidadãos!

Contudo, o dilema permanece, pois, a questão moral subjaz e antecede a legal. Pode o direito de um, eliminar o direito de outrem? E se esse outro for visível apenas ao microscópio, será simplesmente vencido na decisão? Uma sociedade legalizando o aborto torna-se mais “civilizada”?

Minha opinião pessoal, talvez, não corroborada pelas autoridades eclesiásticas, é a seguinte: o Estado é laico e esse fato não é um pormenor! Portanto, seguindo a Constituição, os seus legisladores devem apresentar leis que beneficiem e protejam os seus cidadãos, incluindo o atendimento digno à saúde. O Estado não deve e não pode decidir pela pessoa! Porém, ao Estado lhe compete não apenas, proteger homens e mulheres a quem chama de cidadãos, mas atribui-se também a ele mesmo, a defesa da vida enquanto tal. Por isso, as atuais leis brasileiras em relação ao tema, não me parecem fora do tom, do que se espera do Estado quanto a um assunto tão complexo como a interrupção da gravidez.

Compete às igrejas, não só defenderem as suas convicções, mas apoiar e acompanhar as mulheres ou meninas que enfrentarem esse dilema. É um direito seu e um dever!

Manuel Joaquim R. dos Santos é padre na Arquidiocese de Londrina

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