ESPAÇO ABERTO -O Fantasma da Liberdade
Tristes e infelizes trópicos, onde sonhar pode custar o sangue do encantado
PUBLICAÇÃO
sexta-feira, 23 de dezembro de 2022
Tristes e infelizes trópicos, onde sonhar pode custar o sangue do encantado
João dos Santos Gomes Filho

Se aproxima o Natal e a esperança viaja um trenó psicodélico, puxado por renas neopentecostais vestidas com a camisa canarinho. Não há lugar para o vermelho colorido e o Natal tem patrocínio e atende aos interesses da Fifa. Fato é que a celebração do nascimento do menino Jesus, neste ano, demarca o convívio com o maior evento mundial (Copa do Mundo de futebol), passado no Qatar – lugar onde os direitos humanos são cotidianamente desconsiderados.
Apesar dos tempos conformarem os costumes, viverei meu Natal mais feliz dos últimos seis anos. Tenho motivo para crer. Você não tem? Aliás, o que é acreditar? Já acreditei mais quando jovem. Acredito pouco hoje em dia. Passou que a vida impôs sua própria urgência e, quando a vida fala, a história se apresenta – a minha história, todavia, é urgente e povoada das personagens que compõe, até hoje, o portfólio de minha desesperança. Para constar: sempre amei mais do que me cabia e, amando, me perdi de mim, deixando no passado o menino que sonhou ser maior que a própria história, jogando bola. Quem me despertou foram as estações. Segui, todavia, amando na bola o jogo da vida, na medida em que me revelei pequeno para o tamanho do meu sonho ...
Decepção é quando a vida se impõe sobre a ilusão, desvanecendo a Quimera que não fomos na concretude que marcha ao som dos passos perdidos. Deixamos de ser para estar e essa vivência corrompeu a busca pelo cálice da aliança, onde Deus contratou com o homem o convívio que pastores neoliberais venderam ao anjo caído em troca de mais – dinheiro, poder, tempo, valia... Perder no tempo a constância do viver é dolorido e resignifica minha concepção da vida, naquilo que existir é sim, maior que sonhar. Hoje, homem feito que encaminha o terço final da própria história, a crença que me resta é o passado.
Sigo refém das lembranças que a memória guarda. I Belive in Yesterday, já o disse Lennon (e companhia bela). Aceito – como abjurar aquele que profetizou Picture Yourself in a boat on the river? Yesterday e Lucy in the Sky, todavia, emoldurando meus anos dourados, impregnam de fantasia a trilha sonora de minha adolescência. Tudo isso ao som de Eleanor Rigby e eu era o cara mais feliz do mundo – para não falar do Corinthians, minha benção alegórica. O passado, entrementes, acomoda meus erros e flerta com ele mesmo. Assim, inexorável, ontem cobra um preço alto de minhas escolhas. Sou, pois e cada vez mais, fruto de minhas escolhas. Cada gesto meu reproduz ondas passadas cujo levante memorial aponta para momentos já vividos em sua plenitude.
A vida, definitivamente, imita a arte e, neste contexto, lembro minha felicidade em rever, a cada quatro anos, um de meus filmes favoritos, concebido e desenhado pelo gênio de Luís Buñuel: O Fantasma da Liberdade. Ao longo do tempo, a obra me surpreendia. Este ano não, suposto que a só ideia de civis "protestando" contra o escrutínio da vontade de seus pares soa tão surreal quanto um jantar servido sobre uma mesa ladeada de vasos sanitários, regada a um colóquio burguês que descortina de idiossincrasias a mitomania. Haja vinho, não me falte o coração, pois há um fantasma à solta neste Natal reclamando nossa liberdade. Sua fala é conduzida em nome de nossos arquétipos e se alimenta daquilo que mais nos caracterizaria hoje: ausência de empatia.
O fantasma da liberdade cansou de ironizar nossos costumes e está focado em roubar o que resta de humano em nossa história para, imposta a era das mentiras digitais, cobrar sua libra de carne à míngua do sangue derramado. Protestar é preciso, viver não é – diriam os estetas da obviedade rasa que grassa pelas esquinas sem música de nossos dias noturnos, coloridos pela fasticização das viúvas integralistas. Há, sobre essa nuvem que dissipa a vida, um abandono gradual do fato histórico. A mentira caminha a passos largos, alimentada pela ignorância do pensamento conservador, que vê nas minorias o inimigo a seguir sendo explorado. Ao propagar a mentira (corcel do anjo caído) os sebastianistas flertam com nossos medos. Esse campo é minado e sua cria é o ódio. Ódio de classes, de cor, de comportamento. Ódio à mulher pela impotência de conviver com o orgasmo alheio. Há muito ódio em nossos dias. Em latino América em geral e no Brasil em específico, nunca se odiou tanto. Nos odiamos de nós para vocês que nos odeiam de vós para nós.
Não sei como chegamos a esta encruzilhada sócio afetiva – muito embora pareça evidente que a régua do desamor vem em ondas asselvajadas, surfando o pensamento plural. Assim os novos integralistas se pronunciam, no sustento premissal de que tudo o que não é quadrado deve e merece ser odiado. É esse o sentimento de quem marcha às portas de próprios do exército (ao som de Vandré, meu Deus!) sem saber que marcham com a morte pelo "bem de nossas vidas".. Estamos nos "suicidando" enquanto criadores de nossos próprios conteúdos, naquilo que um "não conteúdo" bate às portas de nossas possibilidades, dançando nossa ignorância à sombra das chuteiras imortais. A vida passa depressa demais para odiar – fica a dica. Obrigado pai, você ensinou amar. Tristes e infelizes trópicos, onde sonhar pode custar o sangue do encantado. Feliz Natal!
João dos Santos Gomes Filho é advogado em Londrina

