Ao tomar posse enquanto presidente da República do Chile, Gabriel Boric quebrou o protocolo ao não caminhar pelo tapete vermelho que conduz ao Pódio. Antes de receber a faixa presidencial, Boric atravessou a ‘Plaza de la Moneda’ e rendeu sensível homenagem à estátua do eterno presidente Salvador Allende.

Allende era presidente do Chile quando os militares, comandados pelo general assassino (Pinochet), deram o golpe em 11 de setembro de 1973. Com a eleição de Boric ascendeu ao poder, enquanto Ministra da Defesa, Maya Allende, neta de Salvador. É dela, portanto, o comando das forças armadas...

Justiça poética baby, redesenhando os desencontros que os encontros desencaminham pela vida. Maya tinha apenas dois anos quando seu avô foi deposto e morreu por se recusar a se render aos militares assassinos que ocuparam o Palácio da Moeda.

Ninguém que lê esta FOLHA desconhece minha paixão gauche. Além disso, guardo um olhar crítico para os golpes políticos que se abateram sobre latino américa ao longo de nossa história – somos feitos de história, a dos outros e a nossa...

Deveras, a ditadura mais sangrenta das américas foi a chilena e o fato de Maya estar no poder enquanto Ministra da Defesa é muito significativo, naquilo que a história se reinventa poeticamente e pelos olhos de uma mulher que perdeu o avô aos 2 anos de idade.

Imagino (tento fazê-lo) os sentimentos experimentados por Maya ao passar em revista suas tropas, mitigando o olhar do passado que se projeta ao futuro. Um Buzz Lightyear de ideias me invade só de pensar que Maya, por mais frágil que possa parecer, está a assombrar os militares que ousaram tomar a história à força.

Não se pode generalizar. Há consciência à serviço da farda – mas não em favor dos interesses do capital que patrocina os golpes. Os pilgrins têm muito pecado a espiar e o mal que espraiaram em favor de seus interesses econômicos, até hoje repristina em Chile, Brasil, Argentina, Bolívia...

Mas não é do imperialismo que quero tratar aqui e sim de minha emoção ao ver Maya empossada Ministra da Defesa chilena. Mais do que significativa, a lembrança que me assalta é poética e me faz uma pessoa melhor..

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Por falar em pessoa, lembro do próprio (Fernando) que, em pessoa, na posse de Maya, me lembrou ao pé do ouvidor: Quem me dera ouvir de alguém a voz humana; Arre, estou farto de semideuses! Onde é que há gente no mundo?

É fruto das pessoas que os deuses não pariram o trabalho desenvolvido para que Maya levasse de volta o nome Allende à Praça de la Moneda. Tear do destino? Reparação histórica? Chame do que quiser, mas não deixe de dizer em alto e bom tom: Allende presente!

Não podemos esquecer que no Estádio Nacional de Santiago os militares golpistas patrocinaram o instante latino mais covarde da história. Maya, todavia, é maior que a dor do sangue derramado. É o novo jovem que hoje é antigo. A ideia que ela carrega é, por si só, poderosa, naquilo que traz no pó de sua caminhada as lembranças de nossa dor.

Ela desanuvia os desencontros, vencendo meus fantasmas no escrutínio da verdade verberando na urna democrática da eleição chilena. O povo chileno resgatou a bondade exilada e Maya é seu símbolo enquanto o covarde da história (Pinochet) segue reconhecido e marcado pelas balas que ordenou fossem disparadas contra a os chilenos que lutavam por seu ideal social, turvando o gramado verde do estádio Nacional de Santiago no vermelho do sangue que escorreu em favor do anjo caído...

O Chile seguia por essa avenida sombria quando as urnas acenderam a vela que não se apaga. Todavia, a noite eterna inaugurada em setembro de 1973 trouxe tanta sombra que os parcos raios de luz que a redemocratização alumiou não bastavam a expurgar a infelicidade da ausência de graça. A felicidade que afasta o breu está no fato de Maya ser neta de Allende...

Há inúmeras esquinas em latino-américa à espera da vela que não se apaga e ela está se anunciando aos poucos. O minuano democrático vem cavalgando o acolhimento das minorias e, em sua essência, reclama a comunhão que o Padre Júlio vem apregoando desde sempre em favor dos descamisados. Faça-se luz, luz!

Há muito caminho a percorrer e a batalha segue árdua. O inimigo é tinhoso e se alimenta da própria ignorância (rasga placa, oh imbecil) enquanto espraia a maledicência da mentira e da corrupção (judicante e financeira), ao tempo em que assiste a dificuldade de quem luta por um prato de comida...

Talvez, quem sabe, um dia, por uma alameda do zoológico, ela também chegará. E a sua beleza nos restituirá a glória – de ser e existir com dignidade. Ave Maya Allende, a história lhe saúda e reconhece...

Tristes e assaltados trópicos. Saudade Pai, os Allende se resgatam aos poucos. Rogo as minorias assim o façam por aqui...

João dos Santos Gomes Filho, advogado

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