Estupefatos e indignados fomos surpreendidos pela coluna “Aos domingos Pellegrini” do dia 20/21 de março: a imagem de um homem branco com dedo em riste, sinalizando a um chipanzé para silenciar e o título “Macaco com orgulho” nos anunciavam problemas maiores. Memórias recorrentes de agressões que vêm desde a infância reavivam as dores já silenciadas tantas vezes para “evitar confusão” – como ensinam em muitas famílias negras. Ao relacionar nosso ancestral primata apenas à população negra, alegando que deveríamos ter orgulho de tal comparação, o sentimento de perplexidade se dá porque não se trata de um escritor iniciante, tampouco é jovem demais para desconhecer os fatos.

A comparação entre negros e macacos se relaciona diretamente com teorias pseudocientíficas e racistas do século XIX que afirmavam a inferioridade e o atavismo de negros/africanos. Para os defensores do tal atavismo, africanos teriam estacionado na evolução e permaneciam mais próximos dos primatas que do ser humano completo, universal: o branco europeu. Tais estudos foram base para antropologia criminal e para Escola Positiva do Direito Penal na qual se embasa a Teoria da Criminologia ensinada até hoje nas faculdades de direito brasileiras – mesmo questionadas. Com Cesare Lombroso até hoje justificam diferentes abordagens e penalidades para negros e brancos que cometeram os mesmos tipos de crime em nosso país.

Há quem possa argumentar que, ao xingar de macaco, o agressor desconhece teorias racistas. É possível. Mas, ao fazê-lo, ele atualiza tais teorias e tem consciência de que não faz elogio, muito menos tem intenção elogiosa. Além disso, sabe que comete crime de injúria racial. Na mesma medida, quem sofre esse tipo de agressão tem sua humanidade negada, porque é tomado por um animal irracional e sabe que tal negação não se dá apenas nesse contexto.

Como ensina Bakhtin, o sentido de uma palavra é definido por seu uso na língua e o sentido de “macaco” como xingamento racista foi forjado em nosso país a custa de sangue, de dor e de muitas mortes. Não bastaria, portanto, que um único homem branco em suas divagações de final de semana quisesse ressignificar o que ainda dói, enlouquece e nos mata. Sim! Nos mata diariamente e literalmente, pois negros/as são maioria da população apenas onde se nega direitos básicos e universais. Desde as taxas de mortalidade infantil, as balas perdidas que só encontram corpos negros, assassinatos de jovens (pelo Estado inclusive), a falta de acesso à saúde, à educação, à moradia, ao emprego, etc, etc. Coincidências ou racismo?

Um leitor mais desavisado poderia supor que, pela ironia com que finaliza o texto, o escritor quis apenas enunciar seu ponto de vista acerca do tema e questionar práticas racistas. Contudo, ao considerar que brancos são sujeitos partícipes e fundantes do problema racial que atinge não brancos, especialmente negros, o escritor faria tal papel ao dirigir-se aos seus pares para articularem entre si as ações que protagonizarão para mudança que afirmam querer na sociedade. Seria inédito um texto de escritor branco (pé vermelho!) iniciando com “Brancos devem...” que esmiuçasse qual conduta a branquitude deveria ter diante de determinada situação. Afinal, de que os brancos podem se orgulhar no contexto das questões raciais? Com raríssimas exceções, brancos persistem em colocar-se como a voz universal, o ser humano completo que dita e determina como e o que fazer diante dos demais. Acham até normal não haver colunistas negros neste jornal, decerto que não haveria alguém com tal capacidade entre os 30% de negros londrinenses. Ou teríamos?

Estamos em plena pandemia e mais uma vez as “coincidências” que acometem a população negra, mais pobre e mais vulnerável nos fazem enterrar mais corpos negros do que brancos. E, em meio a esse luto coletivo, solicitamos apenas que o escritor se retrate e se cale. Coloque-se a si mesmo no lugar do macaco que assiste ao dedo em riste e silencia. Retomando sua luta de anos atrás pelo direito ao silêncio contra a poluição sonora: respeite e fique em silêncio ao menos enquanto enterramos os nossos mortos.

Maria Moreira e Paulo Rosa, do Bloco Negro de Londrina.