Estou envelhecendo e, envelhecido estando, a vida bate às minhas portas, esteja eu no sítio em que estiver, sempre me ensinando. Aprendo hoje mais do que ontem e, seguramente, menos do que aprenderei amanhã – se o amanhã me vier bater às portas, obviamente. Essa é uma verdade que não me pertence: É universal.

Não tenho intenção de, dogmaticamente, esgrimir a tese com que se absolveu um cidadão de uma acusação de estupro, feita pela vítima, em ambiente para lá de propício à narrativa da jovem mulher. Não conheço o processo e, ainda que o conhecesse, nele não atuei. Essas duas circunstâncias sempre me detiveram quando, diante de uma situação que, a meu sentir, reclamasse uma releitura civilizatória, me segurava em atenção ao entorno de minha irrelevância no caso concreto...

Irrelevante em relação ao processo, todavia, não o sou em face da esgrima da advocacia, na medida em que venho empunhando minha espada há trinta anos, sempre em defesa de quem o estado aponta. Já patrocinei de descamisados à abonados e o fiz, sempre, nos limites do que a defesa exigia e o contrato social justificava – confesso aqui ter feito uma ou outra bobagem, mas essa é uma prosa para outra ocasião...

Isso introduzido, espero alcançar aqui o que me diminui enquanto cidadão, em relação à notícia da absolvição de um homem denunciado pelo estupro de uma jovem que se encontrava em condição e estado de vulnerabilidade, tirada em Santa Catarina, bem aclarado que não sou um punitivista – longe disso; estudei e sigo lendo muito para não tornar os valores do estado os meus, conquanto minhas circunstâncias ainda me definem e a terra segue sendo redonda...

Sem qualquer juízo de valor pelos motivos antes apontados, destaco a dor da jovem. Se a absolvição ditada está a lhe malferir ainda mais, a condução do processo em audiência pelo advogado que defendeu o réu, com a benevolente cumplicidade do magistrado que a tudo assistiu, a transformou em algoz da própria situação... É isso que me convida a falar nesta Folha...

Processos vão, processos vem. Ao ler no sítio “The Intercept” sobre a maneira com que o Advogado de defesa se portou em relação a jovem em uma audiência instrutória, se lhe referindo como se a culpa em discussão passasse por seu comportamento, por sua “liberdade exagerada”, por seu “joie de vivre”, por sua ousadia em valorizar e exibir o corpo que lhe pertence, me vejo em um beco. Me sinto menor...

Não se pode mitigar a discussão que o processo alberga no comportamento de quem pede socorro ao estado. Jamais irei, enquanto cidadão e Advogado, aceitar essa ignomínia. Não discuto um ceitil a decisão (não conheço nem atuei no processo, lembrem-se disso), mas grito com toda a minha raiva: A jovem não merecia ser malferida nas barbas do estado juiz.

O fim do processo jamais será a justiça. É um erro acreditar que a decisão recompõe o tecido social. Isso até é possível e, na esfera criminal, algumas vezes pode-se dizer que a chaga foi limpa e o estrago minimizado. Mas falar em justiça é muito pesado. Justiça não pertence ao homem. Justiça é um ideário que nossos avós nos ensinaram e, a nosso sentir, não estaciona sua carruagem nos reservados dos tribunais – ela pode até tentar, mas há de lhe faltar alguma credencial, uma carta convite, um sorriso de pureza como aquele do Renatinho da Márcia e do Renato Nóbrega...

Nossos avós, entretanto, não são juízes e essa circunstância abarca a premissa de que a decisão judicial traduz e exprime a própria justiça.

Todavia, quando um juiz, na presidência de uma audiência, assiste e se porta feito um “dois de paus”, com a parcimoniosa assunção de um promotor público (fiscalize a lei!), ao exercício covarde de um Advogado na destruição do patrimônio moral de uma jovem mulher que no processo atendia a condição de vítima, pode-se dizer que há algo de podre no reino dos processos...

Minha cara jovem vítima, que a natureza machista dos Advogados que se perdem no fio tênue do que significa o patrocínio de uma defesa em juízo não lhe machuque outra vez. Há aqui, a alguns quilômetros de distância de sua Santa e bela Catarina, um Advogado a lhe lembrar que “cinzenta é toda teoria e verdejante e dourada é a árvore da vida”...

O jogo não acabou para você. O direito é só uma história feita de estórias ao longo de sua existência; um instrumento de controle criado e utilizado pela maioria opressora para a preservação dos seus interesses. Já você vicejará além dos cinzas, além dos homens que patrocinaram a covardia de, em audiência, permitirem a desconstrução circunstancial de uma mulher que “ousou” dizer “não”...

Força, jovem mulher; para muito além das páginas cinzentas dos processos, floresce um motivo dourado. Aldir Blanc já fez (se não, deveria ter feito) uma música sobre isso...

Tristes e acovardados trópicos.

João dos Santos Gomes Filho, Advogado