Leio, n’algum sítio, que o Padre Júlio Lancelotti foi indicado (15.598 lembranças de um total de 16.643) e recebeu nossa maior comenda alusiva aos direitos humanos: o Prêmio Dom Paulo Evaristo Arns. Feliz lembrança que põe em cena um homem mito acima dos outros.

Padre Júlio é pároco na Igreja de São Miguel Arcanjo, na Mooca, de onde cuida de menores infratores e dos moradores de rua, para quem criou um programa de alimentação que este que vos escreve pode ver, provar e gostar...

Padre Júlio é de uma estirpe quase extinta de religiosos de empatia grandiosa e amor fraterno tão bem resolvidos que o só fato de se colocarem no lugar do próximo mais lhes conforta que distingue, suposto que amam por ideário e não para abastecer o mercado da fé...

Não raro o ‘Padre dos nóia’, como é pejorativamente atacado o cidadão Júlio Lancelotti pelos imbecis de plantão, é ameaçado de morte e agredido por comentários apócrifos, quase sempre emitidos por supremacistas, homofóbicos, machistas, racistas, terraplanistas, milicianos e gente de bem de uma Paulicéia que trocou o desvario pela ignorância negacionista e segue batendo em mulher.

Seus ‘filhos’ estão na vida a viver do que Lancelotti lhes dá de comer, literalmente – e isso ouvi de um destes herdeiros da fome, na quadra do Sindicato dos Bancários, em São Paulo, alguns anos atrás...

Penso na extraordinária coragem do Padre. Em sua perseverança e em quanta gente alcançou o seu gesto de dar de comer – e este pensamento não vem só, que ultimamente, para me contentar com minhas ausências, dei de pensar em mais de uma cousa ao mesmo tempo...

Assim é que não deslembro da tantada de gente que vive abaixo da linha da miséria, abraçando uma subvida não se completa senão em flashes e por instantes sub-reptícios de felicidade – quase sempre comandados por ocasiões em que ter de comer alimenta o riso e forra o estômago, calando a fome...

Fome e propriedade de gente (da mulher em específico) formam a base misógina sobre a qual cresceu o brasil dos últimos anos, desaguando esta opção negacionista na valoração do patrimônio sobre todas as cousas, notadamente em detrimento da pessoa humana...

Há tanta ignorância no olhar quando o tema por aqui alcança os direitos humanos que a qualidade dos argumentos faz corar quem tem mais de dois neurônios – e há gente com esta quantidade mínima em profusão; estão à testa de conglomerados financeiros, desmatando florestas para o gado engordar e, neste caminho, seguir soltando gases que ofendem a camada de ozônio...

Há tanto desequilíbrio na vida por aqui que os valores foram absolutamente subvertidos: saiu o homem e, em seu lugar, se colocou o mercado – com todos os signos do capital e das demandas que a produção reclama...

Vítima somos todos, mas a mulher é ainda mais, eis que nossa herança machista vitima sempre quem está vítima há mais tempo...

Por este entorno seguimos a tricotar os meandros de nossa existência, buscando o que se perdeu nas nossas agonias, sem garantia de uma nova prumada, cujo desate o destino só desenhará quando enxergarmos no irmão desafortunado algo diferente de um empecilho ou de uma possibilidade de exploração...

E aquele outro que escolheu a entrada de nossa loja para dormir à noite? Será que ele não preferia estar em uma cama quente? Será que um quibe ou uma esfirra não lhe aproveitariam mais do que uma ducha de água fria?

Há tantas variáveis que nos perdemos, mas o caminho recomeça sempre que enxergamos nossos defeitos no próximo. Por hora saudemos a escolha de Padre Júlio e sua gigantesca luta contra a fome dos que têm fome – reconhecida pelo próprio santo Padre – em ordem a acreditar que podemos tornar ao trilho...

Tristes e esperançosos trópicos.

* João dos Santos Gomes Filho, advogado