O modus operandi do jeitinho entranhado na cultura brasileira se acostumou a uma sociabilidade que despreza e diminui as instituições. A ocasião, quando não faz o ladrão, assalta as pilastras que sustentam a res pública. O imprevisto subverte o planejamento. O acaso sepulta ideações e projetos no longo prazo. O jeitinho é regra a justificar comportamentos que depõem contra a racionalidade burocrática do Estado. Muitos sequer sentem vergonha de afiançar ações antirrepublicanas com argumentos que ressaltam a fatalidade ou a sorte. Aliás, sorte mesmo é a do pastor, amigo do ministro, que consegue vantagens pessoais aos seus apadrinhados. De pouco servem instituições rígidas ou exigências de competências técnicas. O que importa mesmo são os laços de compadrio. De irmão para irmão. É o homem cordial de Sérgio Buarque de Holanda convertido na nova fé. Adorador do ouro que há no bezerro.

A administração pública é constantemente agredida por atores que negligenciam a necessidade de planejar e de executar fins coletivos. A Constituição cidadã firmou o Estado de Direito, mas ainda assim resistem políticos e apadrinhados despreocupados em pensar a sociedade sob a ótica de um projeto de nação. Muitos se locupletam com dinheiro público em troca de apoios a arranjos precários, sem compromissos que recepcionem um futuro programado ao país. Racionalidade institucional é algo escasso em terra brasilis. Vale mais a fé, que, aliás, está em alta no mercado político.

A religião, de fato, entrou no debate público contemporâneo. E tudo indica que veio para ficar. Alguns segmentos religiosos mergulharam na política por vias marginais, tomando de assalto as periferias desassistidas pelo Estado. Ocuparam territórios e aprenderam a transmutar pequenos favores – a caridade miúda – em votos. Algumas dessas igrejas têm se personificado em microestados de bem-estar social, lugar de apelo material e de soluções mágicas.

A religião, de um modo geral, sempre conviveu bem com a pobreza e as desigualdades sociais. Ela tem o dom de lustrar a prática da caridade no varejo sem questionar os caminhos necessários para tornar a sociedade menos desigual e mais justa do ponto de vista social. Apoiado na pedagogia do milagre (efeito sem causa), o discurso religioso, em boa medida, não toca nos problemas sociais nem assume compromissos efetivos com as políticas públicas (causas norteadoras de efeitos racionalmente planejados).

A política se vê, infelizmente, cada vez mais capturada por atores que a instrumentalizam em benefício próprio. O patrimonialismo ainda reina a despeito das instituições democráticas concebidas a partir de 1988. Hoje, ao que parece, há um neopatrimonialismo delineado a partir dos púlpitos religiosos. No passado, como registrado por Victor Nunes Leal, em “Coronelismo, Enxada e Voto”, o velho coronel arregimentava votos de um eleitorado grato por pequenos favores realizados com dinheiro público. Hoje, os detentores de púlpitos sacrificam a problematização das questões que realmente importam para uma sociabilidade sadia e plural em benefício da conquista do poder a qualquer custo. No altar da fé, sacrificam o cidadão para parir rebanhos conduzidos sob o cabresto de discursos antidemocráticos. Conduzem votos e operam o milagre de transformar adversários políticos em inimigos a serem transpassados pelo fio da espada, com o “amém” debochado daqueles que erguem a Bíblia numa mão e sacam a arma na outra.

O filósofo Renato Janine Ribeiro, ao tratar da boa política, ressalta que “a democracia não pode ser pensada como um regime duvidoso, em que as pessoas se tornam presa fácil dos demagogos. Ela deve ser respeitada como o único regime em que todos são considerados adultos, portanto, iguais perante a lei”. De preferência, a lei maior gravada nas tábuas da Constituição.]

Clodomiro José Bannwart Júnior é professor de Ética e Filosofia Política na Universidade Estadual de Londrina.

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