Morreu, esta semana, um amigo querido da época universitária. Márcio Stamm. Há duas semanas ele caminhava com sua família pelo condomínio onde moro. Era um final de domingo e eu regava as plantas do jardim quando ele me chamou pelo nome e trocamos algumas palavras. Foi nosso último avistamento...

Gostava dele. Não pensávamos igual, mas havia normalidade cidadã entre nossas diferenças – coisa de quem aprende, de pequeno, respeitar opiniões e pessoas...

Não sei precisar do que morreu Márcio, mas sei que o fato dele estar vivo e aparentemente bem, há dois domingos, caminhando ao ocaso, mexeu comigo. Fará falta ao debate qualificado e aos amigos que mereceram a felicidade do convívio...

Não é só Márcio quem parte deixando saudade. Enterrei vários conhecidos e alguns amigos na pandemia. Dois destes amigos me custaram lágrima e dor: José Mentor, a quem tinha como irmão, e o atorPaulo Gustavoque sequer conhecia pessoalmente – mas de quem era terrivelmente amigo, sem ser evangélico. Explico...

Não conheci pessoalmente o ator Paulo Gustavo, mas era íntimo da personagem que ele criou da própria mãe, Dona Hermínia, que me fazia rir além da conta e na conta do extraordinário talento cômico de seu filho, o ator que precisava ter sobrevivido para seguir fazendo o mundo um palco de riso e crítica.

A morte, com a pandemia, meio que se banalizou por aqui. E a banalização da morte em decorrência de uma pandemia, desde o início minimizada por quem deveria enfrentá-la, é, em tudo e por tudo, a banalização do mal, tal qual a compreendeu a filósofa judia Hannah Arendt, ao tratar do julgamento do carrasco nazista adolf eichmann...

O julgamento de eichmann mereceu atento acompanhamento do mundo todo e enseja um capítulo dos mais desgraçados da história da humanidade, suposto que o contraponto do julgamento em tribunal que lhe garantiu o direito de defesa, revelou, em vez do monstro (que eichmann era), o burocrático funcionário público cumpridor de ordens...

Hannah Arendt, numa mistura de jornalista com a grande filósofa que sempre foi, questionou a capacidade do estado em igualar o exercício da violência homicida ao cumprimento burocrático de um ofício administrativo...

A CPI da pandemia, por aqui, tem a oportunidade de fazer história, suposto que os até então inquiridos (do lamentável e minúsculo ex-chanceler ao próprio ex-ministro da saúde militar) se portam enquanto funcionários públicos, cumpridores de ordens...

Este contexto remete ao epicentro da investigação de Arendt, aportando em sua indagação histórica: como condenar o funcionário público (se honesto) obediente e cumpridor de um plano de governo, que não fizera mais do que agir conforme a ordem legal vigente na Alemanha daquela época? Neste ponto Arendt identifica uma confluência entre a capacidade destrutiva do homem e a burocratização da vida pública.

Nosso governo não é nazista. É de extrema direita e sempre tutelou as maiorias, abjurando a pluralidade e impondo um pensamento único. Jamais se pretendeu respeitado e sim temido. Me lembra em todas as suas características o governo do Duce italiano...

Da Itália do início do século 20 ao Brasil do início do século 21, lá se vai um século. Tempo de espaçamento entre a gripe Espanhola e a Covid-19, as últimas pandemias que nos abateram...

A pandemia iguala pessoas comuns – eu, você, nós, vós – mas separa os líderes políticos por sua capacidade de resistir e persistir em defesa da vida. Em uma situação mundial que ameaça o indivíduo com a morte (e só no Brasil beiramos 500 mil mortos), liderar seria contrapor-se ao espectro letal do vírus...

Por aqui nada disso foi feito, conforme se vê na CPI que descortina os bastidores do enfrentamento do vírus. Por aqui se banalizou a morte, na banalização do mal que vem do abandono...

Agora, ao serem inquiridos na CPI, os mensageiros da gripezinha abanam o rabo e tem pico glicêmico, tratando com uma naturalidade artificial uma situação que está a nos levar amigos, parentes e aqueles que a gente pensava imortais...

As histórias da pandemia empilham cadáveres sobre o descaso do estado que elegeu a cloroquina em tratamento preventivo, não centrando igual esforço na compra de vacinas, no uso de máscara, na opção de ficar em casa, em evitar aglomerações – como se vê na CPI...

Lá, no julgamento de eichmann, Hannah Arendt identificou a banalização do mal. E aqui, na formação de convicção que a CPI propicia, o que teria identificado a grande filósofa?

O mal caminha nesta terra e, ao ser banalizado, pega nas mãos dos que tinham capacidade de fazer a diferença em favor da vida...

É tempo de sofrer no Brasil e a pandemia é apenas um dos vieses pelos quais a ignorância que desmerece a ciência se manifesta. Notícias falsas e redes sociais povoadas de desligados de uma mínima capacidade cognitiva fazem o resto...

Quem julgará a opção não científica do governo no enfrentamento pandêmico? Você, eleitor, na urna, em 2022. Por favor não banalize o mal...

João dos Santos Gomes Filho, advogado