ESPAÇO ABERTO - O céu ocidental...
PUBLICAÇÃO
sexta-feira, 21 de maio de 2021
João dos Santos Gomes Filho
Morreu, esta semana, um amigo querido da época universitária. Márcio Stamm. Há duas semanas ele caminhava com sua família pelo condomínio onde moro. Era um final de domingo e eu regava as plantas do jardim quando ele me chamou pelo nome e trocamos algumas palavras. Foi nosso último avistamento...
Gostava dele. Não pensávamos igual, mas havia normalidade cidadã entre nossas diferenças – coisa de quem aprende, de pequeno, respeitar opiniões e pessoas...
Não sei precisar do que morreu Márcio, mas sei que o fato dele estar vivo e aparentemente bem, há dois domingos, caminhando ao ocaso, mexeu comigo. Fará falta ao debate qualificado e aos amigos que mereceram a felicidade do convívio...
Não é só Márcio quem parte deixando saudade. Enterrei vários conhecidos e alguns amigos na pandemia. Dois destes amigos me custaram lágrima e dor: José Mentor, a quem tinha como irmão, e o atorPaulo Gustavoque sequer conhecia pessoalmente – mas de quem era terrivelmente amigo, sem ser evangélico. Explico...
Não conheci pessoalmente o ator Paulo Gustavo, mas era íntimo da personagem que ele criou da própria mãe, Dona Hermínia, que me fazia rir além da conta e na conta do extraordinário talento cômico de seu filho, o ator que precisava ter sobrevivido para seguir fazendo o mundo um palco de riso e crítica.
A morte, com a pandemia, meio que se banalizou por aqui. E a banalização da morte em decorrência de uma pandemia, desde o início minimizada por quem deveria enfrentá-la, é, em tudo e por tudo, a banalização do mal, tal qual a compreendeu a filósofa judia Hannah Arendt, ao tratar do julgamento do carrasco nazista adolf eichmann...
O julgamento de eichmann mereceu atento acompanhamento do mundo todo e enseja um capítulo dos mais desgraçados da história da humanidade, suposto que o contraponto do julgamento em tribunal que lhe garantiu o direito de defesa, revelou, em vez do monstro (que eichmann era), o burocrático funcionário público cumpridor de ordens...
Hannah Arendt, numa mistura de jornalista com a grande filósofa que sempre foi, questionou a capacidade do estado em igualar o exercício da violência homicida ao cumprimento burocrático de um ofício administrativo...
A CPI da pandemia, por aqui, tem a oportunidade de fazer história, suposto que os até então inquiridos (do lamentável e minúsculo ex-chanceler ao próprio ex-ministro da saúde militar) se portam enquanto funcionários públicos, cumpridores de ordens...
Este contexto remete ao epicentro da investigação de Arendt, aportando em sua indagação histórica: como condenar o funcionário público (se honesto) obediente e cumpridor de um plano de governo, que não fizera mais do que agir conforme a ordem legal vigente na Alemanha daquela época? Neste ponto Arendt identifica uma confluência entre a capacidade destrutiva do homem e a burocratização da vida pública.
Nosso governo não é nazista. É de extrema direita e sempre tutelou as maiorias, abjurando a pluralidade e impondo um pensamento único. Jamais se pretendeu respeitado e sim temido. Me lembra em todas as suas características o governo do Duce italiano...
Da Itália do início do século 20 ao Brasil do início do século 21, lá se vai um século. Tempo de espaçamento entre a gripe Espanhola e a Covid-19, as últimas pandemias que nos abateram...
A pandemia iguala pessoas comuns – eu, você, nós, vós – mas separa os líderes políticos por sua capacidade de resistir e persistir em defesa da vida. Em uma situação mundial que ameaça o indivíduo com a morte (e só no Brasil beiramos 500 mil mortos), liderar seria contrapor-se ao espectro letal do vírus...
Por aqui nada disso foi feito, conforme se vê na CPI que descortina os bastidores do enfrentamento do vírus. Por aqui se banalizou a morte, na banalização do mal que vem do abandono...
Agora, ao serem inquiridos na CPI, os mensageiros da gripezinha abanam o rabo e tem pico glicêmico, tratando com uma naturalidade artificial uma situação que está a nos levar amigos, parentes e aqueles que a gente pensava imortais...
As histórias da pandemia empilham cadáveres sobre o descaso do estado que elegeu a cloroquina em tratamento preventivo, não centrando igual esforço na compra de vacinas, no uso de máscara, na opção de ficar em casa, em evitar aglomerações – como se vê na CPI...
Lá, no julgamento de eichmann, Hannah Arendt identificou a banalização do mal. E aqui, na formação de convicção que a CPI propicia, o que teria identificado a grande filósofa?
O mal caminha nesta terra e, ao ser banalizado, pega nas mãos dos que tinham capacidade de fazer a diferença em favor da vida...
É tempo de sofrer no Brasil e a pandemia é apenas um dos vieses pelos quais a ignorância que desmerece a ciência se manifesta. Notícias falsas e redes sociais povoadas de desligados de uma mínima capacidade cognitiva fazem o resto...
Quem julgará a opção não científica do governo no enfrentamento pandêmico? Você, eleitor, na urna, em 2022. Por favor não banalize o mal...
João dos Santos Gomes Filho, advogado