Morre Jô Soares, nossa maioridade pensante. A tristeza do passamento dá o tom, reclamando lembranças que o tempo não leva. Por muitos anos a dignidade engraçada daquele sujeito gordo e arguto, fino articulista do cotidiano, pautou um mínimo de decência pelas telas da então deusa platinada da tela doméstica de latino américa.

Foi essa decência sem igual que possibilitou a Jô dar voz a então presidenta Dilma, que seria impedida pela onipresença de um arremedo político de centro que desafia a intelligentsia pátria pelos corredores e memória do Congresso Nacional.

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T | Foto: Zé Paulo Cardeal/ TV Globo

Jô tem tanto relevo que o seu passamento segue pautando os dias que sucedem os costumes, num desvelo de pesar que alumia a ferida dos que nele tomavam conforto. Sigo sendo um dos muitos que ouviam na voz do gordo a pintura de um lugar melhor – um sonho feliz de cidade, como disse Caetano.

No ponto, não consigo deslembrar seus bordões inesquecíveis. "Põe ponta Telê. Põe ponta." Mineiramente Telê discordava – será por isso que o treinador afamado jamais nos deu uma Copa do Mundo?

Ademais, quem, senão Jô, para alocar enquanto narrativa romântico-policial o roubo de um violino a ser investigado por Sherlock Holmes no Rio de Janeiro, durante o Segundo Reinado, com ênfase na circunstância física de um Xangô em plena Baker Street, onde o próprio Holmes residia, em Londres?

Ao compor sua narrativa repleta de elementos afro (o meu leitor há de saber o que é um Xangô) em polo de convívio com a Londres recém-saída de sua revolução industrial, Jô leva a ironia fina de sua prosa até o Rio de Janeiro, não por acaso durante o Segundo Reinado, que demarca nossa apoteose monárquica, onde Dom Pedro II assume o poder pelo período de julho de 1840 a novembro de 1889, implementando mudanças que catapultaram muitas de nossas transformações históricas.

E daí em diante haja vatapá e elementos culturais distintos a darem prumo ao enredo investigativo. Jô sempre foi multicultural. Era a própria Nova York vestida de gente – gorda e alegre.

Sem qualquer pretensão especulativa acerca de rótulos, lembro que Jô está muito além de sua época. Foi (segue sendo) alguém cuja palavra jamais esteve nua, desacompanhada. O Gordo superlativava a própria circunstância. Seu grande (imenso) veículo sempre foi a palavra.

Nesse caminho, lembro que Jô não fazia uso descompromissado de suas personagens, tampouco de seus programas de entrevistas. No ponto não tenho qualquer dificuldade em estabelecer conceitos, suposto que Jô, perguntando e interagindo, segue incomparável.

Me recordo bem, lá pelo final dos anos oitenta (creio que em 1989), de uma sua entrevista no Jô Onze e Meia (pelo SBT) que marcou profundamente minha vida à época. Jô entrevistava um de meus heróis, Luís Carlos Prestes, o Cavaleiro da Esperança.

Prestes foi militar e político. Comunista militante, intuiu talvez a personalidade política mais marcantes de nossa história, naquilo que, perseguido e preso pela ditadura do estado novo, Prestes assistiu nossa vergonhosa covardia institucional se curvar ao interesse ditatorial, convivendo com a posição do Supremo de época, que ordenou a extradição de sua companheira (então grávida de seu filho), a judia Olga Benário, para morrer na Alemanha nazista, em um campo de concentração.

Jô, um ano após a promulgação da Carta Política de 1988, deu voz a Prestes pelo viés da entrevista histórica a que me refiro. Acho que foi uma das derradeiras (senão a última) aparição pública do Cavaleiro da Esperança, que mereceu tratamento pautado em notável cortesia e admiração.

Lembro do início da conversa, com Jô se referindo ao Cavaleiro da Esperança enquanto camarada dos camaradas, perguntando-lhe se ainda se considerava um camarada. A resposta de Prestes foi de não se esquecer; após se reconhecer um camarada (lógico que sou um camarada), Prestes seguiu o novelo da própria história a demarcar os motivos de sua crença e esperança. Foi uma entrevista única e, se não me engano, está em vídeo no YouTube.

Mas não é de Prestes que quero falar, muito embora vivamos uma época na qual sua grandeza histórica faz muita falta, e sim de seu entrevistador.

Jô marcou os caminhos (e descaminhos) por onde passou. Sua régua sempre inesgotável foi e seguiu sendo a história, para onde recorria sempre que antevia um motivo.

Mescla rara de inteligência elevada com senso de lealdade ligado ao fato histórico, Jô fez (segue fazendo) corar muito pretenso comediante que hoje acredita ser apresentador de talk show. Vamos, todavia e aqui, por partes e com vagar, para não parecer que falo de alguém que se diga gentil...

O talk show, todavia, tem como característica mais marcante o sistema de perguntas e respostas, cujo desenvolvimento segue o ritmo do entrevistador, que mais do que um mero perguntador, se coloca enquanto articulista da narrativa então por se fazer.

Se estivéssemos tratando de futebol, o entrevistador em um talk show seria o ritmista de meio campo, aquele dez clássico que dita o andamento do jogo. Riquelme, o Argentino, Danilo, o Corinthiano, são dois de meus ritmistas favoritos.

Mas o ritmo não é gratuito, fruto de uma pauta pre produzida. A entrevista nestes moldes, para não cair no lugar comum e derivar para a tolice (que, via de regra, é o máximo que a pessoa gentil consegue produzir), depende demais do conhecimento e da capacidade do perguntador.

Jô sempre será o cara cuja pergunta exige uma inteligência mínima para articular com a imaginação. Sua presença física apontava um leque de hipóteses intelectualmente desafiadoras e, nessa direção, ele conduzia nossa curiosidade, aguçando a angústia de não crer no impossível.

Foi tão grande que soube perdoar o atropelador de sua mãe, lá pelos nos anos setenta. Em lugar da raiva e da mágoa que desconformam, Jô preferiu ver a esperança na atitude do taxista, desenhada no socorro prestado, bem assim no fato dele ter ficado no hospital ao lado do pai do humorista.

São situações descompassadas que se perderam no tempo, suposto que não compõe nossos dias de tiro e assassinato do desafeto político em festa de aniversário, morte em shows musicais, assassinato de ativistas e de políticos gauches. De palavras que sinalizam apoio e apologizam o mais conhecido dos torturadores que a nossa ditadura militar pariu – Tristes e desavergonhados trópicos!

Jô, efetivamente, não era desse mundo.

Saudade Pai. Veja o Gordo por aí.

João dos Santos Gomes Filho, Advogado

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