Lágrimas que não fazem questão de ser enxugadas. Abraços com a intensidade de uma última despedida. Olhares esperançosos para um futuro incerto, fugindo da destruição anunciada e confirmada. Ei-los, mulheres e crianças. Os homens, esses ficaram no front. Uma guerra não é estéril, infelizmente! Bem pelo contrário. Todo o conflito armado prima pela capacidade perversa de gerar situações dilacerantes, que por sua vez se reproduzirão por muitos anos, deixando um rastro de sofrimento e de morte.

A mobilidade de fugitivos, chamados de refugiados, é uma das primeiras consequências da insanidade de uma guerra. Em 2020 segundo a Agência das Nações Unidas, Acnur, eram cerca de 80,3 milhões os que tiveram que abandonar as suas casas por causa de eventos bélicos e perseguições. Uma boa parcela pediu asilo e refúgio noutros países e continentes. A maioria sem sucesso! Agora, estima-se em quatro milhões, os que deixarão as férteis planícies da Ucrânia e adentrarão na Europa ocidental.

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Uma invasão anacrônica e perversa, libertou-lhes o fantasma de uma história que sempre registrou episódios violentos como esse. O mais trágico genocídio, chamado por eles de holodomor, palavra ucraniana que significa “deixar morrer de fome”, foi talvez o último, ainda na memória de alguns sobreviventes. Decorriam os anos de 1931 a 1933 e o autor morava no mesmo complexo ocupado hoje por Vladimir Putin! Seu nome: Josef Stalin! Estima-se uma mortandade de cerca de cinco milhões de ucranianos. Por inanição!

Imagem ilustrativa da imagem ESPAÇO ABERTO - Nenhuma guerra é estéril
| Foto: Aris Messinis / AFP

Ao contrário de poucos anos atrás, quando deixava morrer afogados no mediterrâneo centenas de negros e árabes, a Europa estende um tapete vermelho aos fugitivos. Há, contudo, uma intrínseca coerência histórica nesse gesto. Em que pese clara preferência racial, per si já abominável, existem razões mais profundas nesta abertura das fronteiras. A Europa não só acolhe gente loira de olhos azuis, semelhante aos alemães ou aos nórdicos. A Comunidade Econômica Europeia se revê com terror nos pobres ucranianos. Não faz nem oitenta anos, o êxodo forçado de concidadãos fugindo de Hitler e seus horrores. Cenas que agora, como num filme noir se sequenciam nas fronteiras da Polônia, Eslováquia ou Roménia, como um déjà vu. Os europeus, na verdade, acolhem-se a si mesmos, fugindo de um outro pesadelo que julgavam completamente improvável ou irrepetível. Minha própria mãe de 86 anos dizia-me semana passada: “filho! Eu acolheria aqui uns dez, se viessem”!

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Porém, esta guerra foi abduzida por uma romantização que é também, em si mesma, geradora de potencial dor. A primeira acompanhada ao vivo e a cores pelas redes sociais fomentou uma visão maniqueísta do conflito. Os refugiados ucranianos passaram a ser vistos então como cidadãos expulsos de uma bela terra, onde viviam felizes dentro da velha Europa e que são forçados a correr para os braços de seus “familiares”! São gente como a gente! São gente nossa! Assim gritam milhares de vozes, de Berlim a Lisboa, de Londres a Atenas. Mas a história recente do continente depõe contra esta visão idílica das fronteiras.

Uma parte expressiva desses deslocados não voltará à Ucrânia. Terá deixado para trás os homens da família que poderão morrer ou ficar física e psicologicamente incapacitados pela guerra. As crianças não falarão imediatamente a língua do país que as acolhe. Crescerão em ambientes hostis. Sofrerão bulling. As suas mães serão vítimas dos mais variados abusos, incluindo as visões sexistas como a manifestada pelo deputado de São Paulo numa clara manifestação de aporofobia. O tapete vermelho que pisaram na entrada poder-se-á transformar num vale de lágrimas. Essa é a saga de emigrantes e refugiados. A Europa já provou ser capaz disso, num passado próximo.

Toda a guerra é abominável em suas consequências. Durante décadas, a vida dessas pessoas estará marcada pelos mísseis ordenados por um insano e criminoso, da estirpe de Ivan, o terrível!

Padre Manuel Joaquim R. dos Santos, Arquidiocese de Londrina

Foto em destaque: ARIS MESSINIS / AFP

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