Quedará sem beber, ensinou Piazzolla em sua extraordinária Balada para um Locco ("só você não me vê, porque os manequins piscam para mim"). Para além do maestro, a vida será sempre melhor sob o signo do fantasista. Existir é sonhar.

Assim, quando me desconstruo entre a tatuagem íntima de Anita (que acho extraordinária, sem jamais tê-la visto) e a fala de Zé Neto (ordinária), o cool se impõe em pleno inverno, revelando o desfile de astronautas que não foram ao espaço.

Sigo trôpego e, cambaleante, não vou além das ruas ladrilhadas de Buenos Aires. Sou de uma época que ficou registrada em vinil enquanto o mundo guinou para o pen-drive, evoluindo (dizem) para a nuvem. Sou meu penúltimo whisky...

O gole derradeiro faz lembrar o que notícias mentirosas teimam em deslembrar: Rouanet é uma lei, suscitada a partir de processo legislativo legítimo, submetida às duas casas (Câmara dos Deputados e Senado da República), enquanto a contratação direta dos muitos tocadores de berrante país afora, para alegrar feiras agropecuárias em cidadezinhas amanhecidas de problemas socioeconômicos, sai do erário que alimenta a miséria daquela gente...

É essa miséria (cultural e social) que alimenta o convívio com "meu penúltimo whisky", afagando a resiliência nossa de cada dia ao tempo em que desanuvia o preconceito agro macho, carcomido em estereótipos que o tempo conformou para negar espaço a Gabeu. Zé Neto deve respeito à tatuagem íntima da Anita; senão pela assunção (óbvia) de que o corpo dela pertence somente a ela, pela constatação de que o roto não pode falar do artista.

Ainda que você não goste da Anita, não foi a ela que a cidade pequena pagou, de seus cofres, uma pequena fortuna por uma animação musical em feira rural...

Há, ademais, um abismo que se pronuncia entre a fala machista e preconceituosa do agro cantor e as opções de vida de Anita, suposto que sequer o ambiente inóspito criado pela narrativa construída na divisão de nossa sociedade justifica a exegese que a tatuagem não acoberta: a Lei Rouanet não permitiria uma contratação nos moldes que o tal Gustavo Lima chorou ao perder...

Afinal, o que é cultura? Uma ameaça aos clubes de tiro? Um anátema comunista? Uma ressaca mal curada? Um tango esquecido de Piazzolla? Cultura não é senão compreensão e construção de parâmetros. Zé Neto é cultura, ainda que represada em parâmetros que refletem a água parada da vida.

Foi esse limite que levou o soprador de berrante a se ocupar da tatuagem íntima de Anita, em auxílio retórico da disputa de narrativas. Assim, ao atacar Anita, Zé Neto só fez afagar os feitores da vaquejada.

Enquanto isso imbecis fardados teimam em prestar continência à urna. Zé Neto, sem saber, pode ter dado início à colheita sem ter plantado nada de bom no solo que o gado amassou.

A fala grosseira do tocador de berrante conjura a odisseia na marcação fálica que agride e desconsidera a manifestação feminina. O fato de Anita ser uma gostosa não deveria regular nossa percepção acerca de seus motivos. Antes o contrário. Ao tatuar a própria arrière, Anita mandou uma mensagem subliminar ao mundo: o ratatui é meu, faço lá o que quero, com quem quero, quando quero e gente preconceituosa com limitação machista não tem nada com isso...

Aqui se pronuncia uma disputa civilizatória. Anita e suas opções de vida não deveriam ser objeto de nosso preconceito, ao tempo em que tocadores de berrante seguem alimentando a fúria sobre as escolhas dos outros.

Anita ausculta o inconsciente coletivo, Zé Neto afaga o tempo que represa a consideração do outro na ausência de sabença. É a ignorância machista quem faz crescer a crucificação das escolhas de liberdade feminina em nossa sociedade.

Zé Neto e sua fala agressiva não revelam qualquer apego ético. Tampouco refletem qualquer salvaguarde de uma inexistente "moral coletiva". Ele é só mais um entre muitos que têm medo da crescente liberdade feminina. Ele não saiu do ontem justamente porque está apavorado com a alegria (joie de vivere) do dia de hoje. Zé Neto é passado sem estar no presente...

Sua fala preconceituosa dá o tom, todavia, pela vibração do berrante e segue tangendo um gado que se alimenta em pasto ignato, enquanto Anita e sua tatuagem íntima signifiquem muito mais para o desenvolvimentismo social, ocupando espaços de fala em favor da valorização da mulher. Anita é plural enquanto o cavernícola amedrontado siga sendo o próprio umbigo.

Saudade pai, você me lembra, sempre, que a vida que segue um tango, ainda que a trilha sonora da ignorância venha em berrantes fálicos que não apreciam o corpo feminino onde o sol não alcança.

João dos Santos Gomes Filho é advogado em Londrina

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