ESPAÇO ABERTO - Liberdade e (In)tolerância
PUBLICAÇÃO
segunda-feira, 23 de janeiro de 2023
Gerson Leite de Moraes
Caro leitor, não quero gastar estas preciosas linhas tentando fazê-lo lembrar das barbaridades dos últimos dias no Brasil, com certeza estão vivas na memória. Eu gostaria muito de refletir sobre as causas da violência e do fanatismo que têm chocado a nação ultimamente.
Você deve ter ouvido, seja num círculo de amigos ou mesmo no ambiente familiar, que o tema da liberdade é a justificativa para uma série de disparates cometidos em nosso país.
De repente, motivadas por um discurso, as pessoas começaram a se mostrar raivosas e passaram a demonstrar que estariam dispostas a qualquer sacrífico para preservar a tão “ameaçada” liberdade, mesmo que isso nunca tenha sido sequer cogitado. Em nome da sua liberdade, tais grupos passaram a não só lutar contra moinhos de vento, mas começaram a ameaçar a liberdade das demais pessoas.
Arvorando-se como “os lídimos patriotas”, “o verdadeiro povo brasileiro”, ou seja, aqueles que foram iluminados por uma verdade dada a poucos escolhidos, os radicais esqueceram que os demais que não concordam com eles também são verdadeiramente parte desse povo. O monopólio do “ser” povo não é exclusividade de um grupo somente, mas pertence à coletividade. Imbuídos de um regime de verdade, os radicais defensores da sua liberdade não ouvem mais ninguém, não sendo possível travar qualquer tipo de diálogo com eles, daí para a intolerância, agressividade e vandalismo, são poucos passos.
Por que isso ocorre? O que está por trás desse carreadouro de embrutecimento e fanatismo? Por que, em nome de uma virtude ou um bem considerados superiores, as pessoas se deixam enganar por discursos populistas e raivosos? Vamos aos fatos e em busca de algumas respostas. Na literatura da filosofia política, a liberdade tem duas possibilidades: a “positiva” e a “negativa”. Nesses dois caminhos para a definição do conceito de liberdade, a concepção “positiva” a compreende como autogoverno, autorrealização ou autonomia. Já a concepção “negativa” a define como não-interferência ou ausência de coação externa.
Ser livre, no primeiro caso, é buscar reunir todas as condições para o exercício da autonomia. No segundo, a liberdade significa a remoção de todo e qualquer obstáculo que se oponha à ação desejada. Tanto num caso como em outro, a liberdade não pode ser tomada como um conceito absoluto, pois cairá, inevitavelmente, numa tirania que beneficiará alguns e oprimirá e massacrará tantos outros.
O que deve regular a liberdade então? Sem dúvida, a lei. É ela que impõe o limite para algo que não pode jamais ser pensado de forma absoluta. Qualquer forma de liberdade requerida, seja de expressão, de ir e vir ou de religião, precisa estar resguardada e limitada pelo império da lei.
Isso posto, pensemos num caso concreto a respeito da liberdade. Todos sabemos que o Brasil é um país com várias religiões, sendo algumas maiores que as outras. No mercado (espaço de trocas) das religiões, todas precisam ter seus direitos de expressão e de culto resguardados pela lei, garantindo a elas o direito de tentar crescer, ou seja, de conquistar novos adeptos. Quando esse modelo de liberdade religiosa, que é boa para todas as religiões, não é observado, o que se vê é a manifestação mais sórdida de intolerância. Nada mais antigo e repugnante do que pessoas se colocarem a perseguir e destruir os princípios de fé dos outros em nome de um regime de verdade ou de crença. Um grupo hegemônico num lugar, muitas vezes, pode ser minoritário em outro, portanto, a liberdade regulada pela lei garante condições justas para a existência e expansão de todas as religiões. Ressalto que esse princípio deve valer também aos que pregam contra toda e qualquer religião, afinal, deve-se preservar a liberdade de crer e de não crer.
O monopólio é ruim em todos os setores da vida, no campo religioso mais ainda, pois o fruto mais amargo da ausência de liberdade ou da liberdade equivocada, aquela que não respeita e não reconhece o outro, é a intolerância, a violência e o fanatismo em nome de Deus.
Gerson Leite de Moraes é professor de Teologia do Centro de Educação, Filosofia e Teologia (CEFT) da Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM). Doutor em Filosofia pela UNICAMP

