Leio, n’alguma mídia, que o ministro presidente do STF (Luiz Fux) decidiu que o empate no julgamento de ações penais não pode ser convolado na absolvição do réu. Com essa canetada Fux desconstruiu mais de vinte séculos de história...

O benefício da dúvida nasceu na Roma antiga, em um dos julgamentos do apóstolo Paulo. Paulo foi levado à presença de um juiz, acusado por um promotor de ter colocado fogo em Roma. Ao ser perguntado (pelo juiz) se, de fato, teria atentado contra a cidade eterna, Paulo negou, sustentando estar, na ocasião, fora de Roma, usando a expressão literal ultra Tibre (além do rio Tibre). Apontou três pessoas que estariam com ele.

O julgador colheu a prova do álibi e, antes de se pronunciar sobre a culpa de Paulo, ouviu do promotor que o Apóstolo, se não colocou fogo, poderia ter ordenado que outrem incendiasse a cidade eterna.

O juiz não aceitou o argumento do acusador alegando a mutação do libelo (mutatis libeli), já que a acusação não era de mando e sim de ação própria. Decidiu, ainda, que o álibi produzido por Paulo, no mínimo estabelecia uma dúvida razoável (in dubio pro reu), impeditiva de sua condenação. Mandou soltar Paulo...

O resto é história – da humanidade e da cristandade e o princípio que nascia há mais de 2000 anos seguiu iluminando o estado democrático de direito. Até agora...

Não pensava, todavia, vivenciar tanta arrogância punitivista em um espaço minúsculo de tempo. A decisão do ministro subverte o axioma cristão ao tempo em que impõe o pensamento raso do ativismo punitivista.

Ao mitigar o benefício da dúvida, o ministro espraia sua dificuldade cidadã e desnatura a dicção do direito, projetando sua luz opaca para o campo já desolado do processo, na desconstrução de um marco civilizatório...

Sempre tive paciência argumentativa. Desde a academia – que saudade UEL...

Todavia, do ministro Presidente do Supremo esperamos luz e não treva. Foi o que Sua Excelência fez ao mitigar mais de 2000 anos de história – e que história...

Para piorar ainda mais, li a explicação do ministro negacionista da história da cristandade. Ele disse que o benefício da dúvida estaria restrito a questões "excepcionalíssimas", não incluindo "períodos em que o Tribunal estiver incompleto"...

Conquanto seja de domínio público, o ministro Marco Aurélio se aposentou e a sua vaga ainda não está preenchida, o que deixa o Pleno do Supremo, momentaneamente, com dez e não onze ministros...

Assim, não satisfeito em negar o princípio – que é dos grandes contributos da cristandade, com mais de 2000 anos de história e serviços prestados às gentes – o ministro põe a eventualidade da composição do Supremo acima da tradição benevolente que luziu desde sempre...

Muito raso o escrutínio punitivista do ministro. Não que eu esperasse grandeza cidadã de quem sempre flertou, no limite, com os próprios interesses, parecendo ‘matar no peito’ as mazelas civilizatórias. Mas não acreditava que o instante medíocre de nossa vivência desaguasse no lugar comum da covardia. Esperava mais da Toga...

A dificuldade é que não basta a Toga vestir o homem, este tem que servir na Toga...

Já disse antanho que juiz que se vale da Toga não é juiz – é qualquer coisa que age feito juiz, se parece com juiz, mas não é juiz. Ser juiz é ser muito mais do que o sujeito que decide. É ser o cidadão que respeita.

Fux não respeitou a história (tampouco a história da cristandade). Quisesse ele questionar o princípio conformando-o a um entendimento diverso, tivesse a grandeza de defender sua posição com argumentos dogmáticos, históricos, filosóficos, sociológicos, literários, humanistas. Nunca com uma circunstância minúscula que sequer será anotada no rodapé da história...

Se a decapitação de Paulo serviu para projetar ainda mais o cristianismo, talvez a canetada do ministro detrator de conquista civilizatória sirva para nos deixar mais atentos com nomeações à Corte Suprema. Seria de bom tom, na sabatina do

Senado, ouvir indagações literárias, curiosidades musicais, inquietações filosóficas, conhecimento histórico...

O que não podemos mais é seguir flertando com a covardia punitivista. Gente nasceu para mais, nunca para menos. No país que estamos gente não parece ter nascido para brilhar e sim para ser tangida. Notadamente se compõe alguma minoria...

Essa gente que não tinha quase nada, todavia, se valia (vez ou outra) do benefício da dúvida. Lamentável ministro!

Quando o direito usa de uma régua moral em lugar de observar a efervescência histórica, quase sempre quem paga a conta é o hipossuficiente. Não podemos mais seguir divorciados da razão. Há muito para se resgatar. A plenitude cidadã deve cobrar, do ministro, o custo histórico de sua decisão.

Tristes e ignatos trópicos.

Saudade Pai – tua roça segue sendo minha recompensa. Amar vem de teus olhos!

João dos Santos Gomes Filho, Advogado

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